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30 dezembro, 2014

A Viagem




A estação era fria. As pessoas caminhavam lentamente, arrastando pesadas malas. Num repente, comecei a ouvir alaridos de espanto. Uma velha vestida de branco, havia subido à torre do relógio e sem que ninguém soubesse como, sentou-se no ponteiro das horas. Os viajantes, aos poucos, foram abandonando a bagagem, concentrando-se por baixo da torre. Tentavam convencê-la a que descesse e ela recusava, dizendo não ser ainda a hora. Alguém chamara a policia, que tardava. Todos os olhos estavam agora postos no ponteiro das horas, até os meus, e naquela mulher misteriosa. Envergava uma camisa de dormir branca de bordado inglês, que subira até às coxas. Uns longos cabelos, completamente brancos, tocavam-lhe nos joelhos. Com as duas mãos, segurava um saco de ráfia, que parecia cheio e ela olhava para cima, com um olhar doce, como se visse estrelas e não a estrutura metálica da estação.


Não sei quanto tempo passou. O relógio da estação deixou de marcar o tempo e o meu relógio de pulso também. Desconfio que nenhum relógio funcionava. Mais que uma vez, vi entre os que ali estavam, de olhares desorientados, perguntar a uns e outros as horas, sem que ninguém soubesse responder. Incrédula, deduzi que o tempo, obedecia aquela mulher que todos tomavam por suicida. Fiquei curiosa. O que haveria dentro daquele saco de ráfia? Como se se apercebesse da minha curiosidade, a mulher olhou-me. Apontou-me o dedo e pediu-me que chegasse mais perto. Obedeci. Abriu o saco e retirou lá de dentro uma mão cheia de ponteiros, dizendo que era chegada a hora. Com uma agilidade inesperada colocou-se de pé em cima do ponteiro, ficando assim, de costas viradas para o corpo do tempo, pisando o braço das horas. Ao mesmo tempo que uma nuvem de pombas brancas, invadia a estação, esvoaçando por cima da torre do relógio e da velha, que já nem me parecia tão velha. Voltou a olhar-me, esticando a mão cheia de ponteiros e disse-me
- Isto foi teu. Perdeste tantos, como o tanto que pesa a tua mala. Vê!
Lançou-os, como se atirasse comida às pombas, que os recolheram ainda no ar, e, desapareceram com eles no bico.


Voltou a enfiar a mão dentro do saco, retirando mais um punhado de ponteiros. Desta vez olhou para a mulher ao meu lado e repetiu a operação. Repetiu-a com todos os viajantes que a olhavam em silêncio, como se esperassem a sua vez. A cada vez que o fazia parecia perder idade. Quando o saco ficou vazio, não era mais que uma criança, de uns 7 ou 8 anos. Abriu os braços e saltou. Naquele momento, um anjo caía da torre do relógio. Antes que atingisse o chão, 7 pombas agarraram-na, elevaram-na e desapareceram com ela. Consternados, os viajantes olhavam-se entre si, tentando perceber, se o que haviam presenciado fora real, ou apenas uma alucinação partilhada, que ninguém quis explicar à policia, quando finalmente chegou. O único crime que encontrou, foi tempo perdido.


Ouviu-se a última chamada para o último comboio da noite. O relógio da torre marcava agora 5 minutos para a meia noite. Após 1 ou 2 minutos de despedidas, a estação ficou vazia e o comboio cheio. A vida prosseguiu como se nada. Quando peguei na minha mala, pela primeira vez percebi-lhe o peso. Hesitei, mas acabei por a deixar ali mesmo e entrei no comboio. Afinal, a ternura é leve e não precisa de bagagem. Nenhum tempo se perde ou envelhece com ela.Talvez seja isso, o único que me faz falta, nesta viagem.


Sónia M



A todos os amigos deste blogue, desejo que a vossa viagem seja leve.

Feliz Ano Novo.

Um forte abraço.

26 novembro, 2014

A Menina e a Árvore






- Mãe, por que caem as folhas?
- Por causa da menina.
- Qual menina?
- A menina que tinha uma árvore.
Nunca vos contei essa história?
-Não!









Houve um tempo em que as raízes eram as casas e havia mais raízes que prédios.
E havia mais árvores que homens e mais flores que alcatrão. E quando a manhã
chegava à hora de vir, trazia o canto dos pássaros e não as buzinas dos carros.
Numa noite clara, como esta, um vento antigo segredou-me ao ouvido, que
naquele tempo o ar era leve e as árvores ficavam grandes e fortes, muito mais
depressa que agora. E depois que vestiam o seu vestido verde de folhas,
jamais o despiam. Não sei se isto alguma vez foi verdade, mas foi assim que
aquele vento me disse, mesmo antes de sumir por entre as casas adormecidas.
Disse-me ainda que o "depressa" e o "devagar" não existiam. Ninguém contava
o tempo, nem havia relógios, nem horas. Tudo chegava quando chegava,
porque fazia falta que chegasse, nada nem ninguém tinha pressa e nunca havia
atrasos. Como o Sol e a Lua, que também nunca se atrasam e sempre chegam.

Foi nesse tempo, em que tudo era simples, que nasceu uma menina,
de pele morena e uns olhos muito verdes, como as folhas das árvores.
A menina foi crescendo e ao mesmo tempo que crescia a menina, uma árvore
também crescia. Todo o tempo que podia, a menina passava com a árvore.
E a árvore protegia a menina. Por  dentro, a menina amava a árvore 
e a árvore por dentro, amava a menina.
Assim começa a história:

Era uma vez uma menina que tinha uma árvore, não tinha um gato, nem um cão,
nem um pássaro. Tinha uma árvore! Ou talvez fosse a árvore que tinha a menina...
Brincavam ao "faz-de-conta-que-sou-uma-árvore". A Árvore brincava tão bem,
que a menina sempre perdia! Encostava-se de braços abertos ao seu tronco e
ficava quieta, como a árvore. As formigas subiam-lhe pelas pernas e faziam cócegas.
E a menina saltava e saltava e sacudia! Mas a árvore não. E a menina perdia.
A árvore nasceu a saber ser árvore e a menina a sonhar que o seria.

O tempo passava sem que ninguém o contasse e um dia a menina, deixou de ser
menina, nunca mais brincou ao "faz-de-conta-que-sou-uma-árvore"
e resolveu brincar a ser menina. Partiu para longe, muito muito longe! 
A  árvore, ao ver que a menina não chegava quando devia, entristeceu. 
A melancolia pintou-a de dourado. E subitamente, embaladas nos braços do vento,
uma a uma, todas as folhas caíram. Quando a primeira folha 
tocou o chão, o homem conheceu a tristeza, a nudez...a melancolia. 
E começou a contar o tempo. E inventou a palavra "saudade".
Foi então que todas as árvores se despiram.

Mas já foi há tanto tempo, mãe!
Porque caem ainda as folhas das árvores?



Porque os braços de uma árvore podem ser tão compridos, 
que quando abraçam, abraçam por dentro a alma do tempo. 
Apesar de não contarem minutos nem horas, todos os anos há uma altura
em que se despem, como se despiu a árvore da menina.  Sabes, só o homem 
conta o tempo e esquece. Esquece tudo. Esquece a alegria,
a tristeza. Esquece o amor, a melancolia. Esquece até o tempo, que conta.
Mas as árvores não.  As árvores não conhecem o esquecimento.
De quando a quando, há uma menina que nasce árvore, ou será uma árvore 
que nasce menina...
Brincam ao "faz-de-conta-que-sou-uma-árvore", com uns braços de amor,
que se estendem para além das distâncias, das ausências e do tempo.
E brincam tão bem, que não esquecem, nem são esquecidas. 
Nenhum amor é tão pleno, simples e verdadeiro, como este, com que nos toca.
Eu tenho uma Menina/árvore, ou será a Menina/árvore que me tem...
 e tu também tens uma, acredita. 

Sabes? 
Eu sei que não é por causa da menina que as folhas caem...
E também  sei de quem estás a falar!
E também sei quem é a minha...


Texto, Sónia M
(Contos para adormecer)

Desconheço a autoria da imagem...




16 janeiro, 2014

O anúncio da pedra



Há muito muito tempo atrás, uma tempestade apoderou-se da noite. Chuva, vento e relâmpagos invadiam os céus, num cenário medonho. O vento varria brutalmente os campos que circundavam a cidade, arrastando pelos ares as pedras mais pequenas. Sendo depois largadas nas ruas, nos telhados e nos jardins, inundados pela chuva. Uma dessas pequenas pedras, guardava ouro no seu interior e ao ser atingida por um relâmpago, os deuses, num descuido, deram-lhe vida. O sossego daquela pacata cidade foi devastado. Pela manhã todos os habitantes uniram esforços para limpar as ruas e repor a ordem. Limparam telhados, escoaram a água dos jardins, retiraram todas as pedras das ruas. Todas, menos uma. A pedra viva, permanecia em frente a uma janela e por mais que todos se esforçassem ninguém a conseguia mover. Não tinha braços nem pernas, mas ganhara boca. Sempre que a abria era com o intuito de rebaixar e humilhar os que com ela tropeçavam.

No inicio, talvez pela febre do ouro, ou encantados por aquele pequeno milagre, muitos se aproximaram dela, mas, mal lhe ouviam a fala pesada, depressa se afastavam. Com o tempo acabou por cair no esquecimento. Não passava de uma pedra no caminho. Uma pedra rica mas odiosa. Passou tanto tempo em frente àquela janela, que começou a invejar a vida que via do outro lado da vidraça. Se falavam, se riam, se choravam, se erravam, se acertavam. Tudo na vida, que aquela janela lhe mostrava, se tornou numa obsessão para a pedra. A sua mente de pedra era tão mesquinha, que achou que tinha um único propósito na vida, um único destino: romper aquela vidraça. Havia noites em que a Lua, com uma extrema paciência, lhe ouvia os gritos de raiva e inveja, sempre que se via ignorada e desprezada por todos. Tentava até acalmá-la, dizendo-lhe que se olhasse melhor à sua volta, talvez encontrasse um outro propósito para aquele acidente de vida, que não fosse o de destruir propriedade alheia. Mas ela nada ouvia.

Oferecia ouro a quem a atirasse. Todos se negavam, afinal também eles tinham janelas. De que lhes serviria depois o ouro, a não ser para consertar o que também podia ser quebrado. Então um dia, numa única nesga de ilusória sabedoria, a pedra entendeu por fim, que precisava de alguém que vivesse numa casa sem janelas, sem telhados de vidro e sem espelhos. E resolveu anunciar a sua procura no jornal da cidade. Mal viu o editor do jornal, ofereceu-lhe um pedaço de ouro, em troca de ver publicado o seu anúncio. Percebendo as suas intenções malignas, o editor, acedeu ao pedido, mas, ao chegar à redacção, resolveu alterá-lo ligeiramente.

O anúncio da pedra.

Procura-se uma alma limpa de vida. De uma extrema  pureza..
Uma alma virgem, que permaneça parada, para  que  nenhum 
passo a corrompa, ou lhe viole a pureza. Uma alma que habite 
numa casa sem janelas nem telhados, onde  os  espelhos  não 
façam mais sentido e todos lhe atirem flores.  Uma  alma  que 
carregue o céu entre os dedos.  Procura-se um  morto,  para 
um trabalho simples e rápido. Como recompensa, uma pedra 
de ouro. A quem reunir estas condições, basta que responda
para a secção de anúncios deste jornal, e, ser-lhe-ão facultadas 
mais informações. 
Ass: A Pedra


Consta, que até hoje, ninguém respondeu ao anúncio.

Sónia M


(Tenho uma pedra no meu caminho. No meu caminho tenho uma pedra.)


29 dezembro, 2013

A viagem



A estação era fria. As pessoas caminhavam lentamente, arrastando pesadas malas. Num repente, comecei a ouvir alaridos de espanto. Uma velha vestida de branco, havia subido à torre do relógio e sem que ninguém soubesse como, sentou-se no ponteiro das horas. Os viajantes, aos poucos, foram abandonando a bagagem, concentrando-se por baixo da torre. Tentavam convencê-la a que descesse e ela recusava, dizendo não ser ainda a hora. Alguém chamara a policia, que tardava. Todos os olhos estavam agora postos no ponteiro das horas, até os meus, e naquela mulher misteriosa. Envergava uma camisa de dormir branca de bordado inglês, que subira até às coxas. Uns longos cabelos, completamente brancos, tocavam-lhe nos joelhos. Com as duas mãos, segurava um saco de ráfia, que parecia cheio e ela olhava para cima, com um olhar doce, como se visse estrelas e não a estrutura metálica da estação.


Não sei quanto tempo passou. O relógio da estação deixou de marcar o tempo e o meu relógio de pulso também. Desconfio que nenhum relógio funcionava. Mais que uma vez, vi entre os que ali estavam, de olhares desorientados, perguntar a uns e outros as horas, sem que ninguém soubesse responder. Incrédula, deduzi que o tempo, obedecia aquela mulher que todos tomavam por suicida. Fiquei curiosa. O que haveria dentro daquele saco de ráfia? Como se se apercebesse da minha curiosidade, a mulher olhou-me. Apontou-me o dedo e pediu-me que chegasse mais perto. Obedeci. Abriu o saco e retirou lá de dentro uma mão cheia de ponteiros, dizendo que era chegada a hora. Com uma agilidade inesperada colocou-se de pé em cima do ponteiro, ficando assim, de costas viradas para o corpo do tempo, pisando o braço das horas. Ao mesmo tempo que uma nuvem de pombas brancas, invadia a estação, esvoaçando por cima da torre do relógio e da velha, que já nem me parecia tão velha. Voltou a olhar-me, esticando a mão cheia de ponteiros e disse-me
- Isto foi teu. Perdeste tantos, como o tanto que pesa a tua mala. Vê!
Lançou-os, como se atirasse comida às pombas, que os recolheram ainda no ar, e, desapareceram com eles no bico.


Voltou a enfiar a mão dentro do saco, retirando mais um punhado de ponteiros. Desta vez olhou para a mulher ao meu lado e repetiu a operação. Repetiu-a com todos os viajantes que a olhavam em silêncio, como se esperassem a sua vez. A cada vez que o fazia parecia perder idade. Quando o saco ficou vazio, não era mais que uma criança, de uns 7 ou 8 anos. Abriu os braços e saltou. Naquele momento, um anjo caía da torre do relógio. Antes que atingisse o chão, 7 pombas agarraram-na, elevaram-na e desapareceram com ela. Consternados, os viajantes olhavam-se entre si, tentando perceber, se o que haviam presenciado fora real, ou apenas uma alucinação partilhada, que ninguém quis explicar à policia, quando finalmente chegou. O único crime que encontrou, foi tempo perdido.


Ouviu-se a última chamada para o último comboio da noite. O relógio da torre marcava agora 5 minutos para a meia noite. Após 1 ou 2 minutos de despedidas, a estação ficou vazia e o comboio cheio. A vida prosseguiu como se nada. Quando peguei na minha mala, pela primeira vez percebi-lhe o peso. Hesitei, mas acabei por a deixar ali mesmo e entrei no comboio. Afinal, a ternura é leve e não precisa de bagagem. Nenhum tempo se perde ou envelhece com ela.Talvez seja isso, o único que me faz falta, nesta viagem.


Sónia M


A todos os amigos deste blogue, desejo que a vossa viagem seja leve.

Feliz Ano Novo.

Um forte abraço.

19 dezembro, 2013

"Como se faz um desenho?"



Era uma vez um país pequenino, muito colorido.
Cada habitante tem uma cor, da qual é responsável.
Encarregando-se de a espalhar durante todo o ano, por todo o país,
mantendo assim, uma beleza harmoniosa, que salta à vista de cada
ser que o visita.

O senhor Raul, de norte a sul,  todos os dias, pincela o céu de azul.
A dona  Felisbela, tem uma filha, a Amarelinha, as duas, lado a lado, antes do
país ter acordado, pintam bem alto, uma enorme bola amarela.
O Senhor Franco, mora bem ao centro. Gosta tanto de ver tudo limpo e puro,
que passa o dia inteiro a pintar, todas as paredes de branco. E às vezes,
até a gota de chuva, mais fina e singela, ele envolve de um branco mais frio,
que a congela. O Senhor Jacinto, passa o dia empoleirado, com o seu filho Dédés
a pintar de cinzento, todas as chaminés. Todas as casas têm uma, sendo
essa a nossa sorte. Por cada chaminé, sai uma cor, que se espalha pelo ar,
pintando qualquer terra distante.

O senhor Zé é um pouco coxo, por isso pinta, apenas,
algumas flores de roxo. Quase me esquecia do senhor Pimpão, que de
vermelho nos jardins, gosta de dar, mais que uma demão.
Ah! E o senhor João, que com o verde claro, ou mais escuro, está
encarregado do chão e de todas as folhas, que podes ver, na Primavera
e no Verão. Há ainda o senhor Estranho, que pinta os troncos das árvores
de castanho. O Guigochas, é traquinas. Saí à rua de quando a quando, com
as suas  galochas, um balde de água e uma esponja e borra tudo, causando
às cores, um grande transtorno. A dona Maria espera sempre pelo fim do dia.
E por causa da sua enorme franja, que sempre nos olhos lhe cai, tropeça em
todas as pedras, fazendo voar pelos ares, o seu balde com a cor laranja.
Corre em seu socorro a dona Anacleta, pintando uma enorme lua, que
derrama sobre tudo e todos, uma linda cor de prata. 
Há até uma cor que poucos querem - o preto.
E por se ver sempre tão esquecida e desprezada, passa o ano a ruminar
uma forma, de se ver no país instalada. Faz-se amiga das aranhas, que no
escuro, tecem as suas teias. Espirra por cima das nuvens, deixando-as
negras e feias. Pede ajuda ao senhor Vento, que de cores nada sabe,
que contorne a todos de preto, sem haver cor que os salve.

Adormecem todos e enquanto sonham,
das suas chaminés, saem as cores, que o mundo pintam.

Sónia M

Contos para adormecer.

Ilustração de Guilherme M. C. (7 anos)






03 dezembro, 2013

A mulher do Vento



Um dia, enfiou as mãos na boca e puxou a garganta para fora.
Passou o dia a desatar nós. Caiam-lhe aos pés, as dores que ali se cravaram.
Servindo-se das unhas, raspou o calado, que separou cuidadosamente, da mescla
de sangue e lágrimas que lhe escorria pelos cotovelos. Depois, voltou a colocar a
garganta no sitio e atirou com o que dali arrancou para cima da mesa. Houve os que
perderam a fome, outros a sede, outros ainda, o sono. Depois disso nunca mais falou.
Esta é a história de uma mulher, que dizem ser tão antiga como a rua. Chamam-lhe a
mulher do Vento. Dizem, que desde esse dia, a sua voz é nada mais que um sopro leve,
que liberta das curvas do tempo e faz ouvir através de uma flauta. Sem se importar
com o que os outros dizem ou pensam, pois só a eles lhes pertence. Todos os dias,
à mesma hora, toca naquela esquina. Há os que passam e a chamam de louca.
Há os que param e escutam, sem entenderem. Há a criança que canta e a árvore
que estende os seus braços e lhe abraça a leveza. Mas só o Vento se demora no que
ouve, rodopia sobre a rua, assobiando a mesma melodia em cada janela, até que já
cansado a leva consigo, para a sua morada, que ninguém sabe onde fica.
E quando todos já dormem, a rua murmura o que o vento lhe trouxe... e a lua sorri.

Sónia M





17 março, 2013

Era uma vez um "poeta" que mastigava as letras...


Ao André, o menino dos porquês.


Numa manhã fria, como qualquer outra, encontrei o calor à porta de casa.
Estava vestido de branco, com um chapéu às cores, sentado no primeiro degrau da entrada.
Mantinha a mão direita, com os dedos a apontar para uma folha branca, que segurava nos 

joelhos. Todos os pássaros da cidade sobrevoavam a minha rua em círculos, como se 
esperassem que alguém, de repente, lhes atirasse migalhas de pão.
A imagem era tão irreal, que cheguei a pensar que ainda dormia e me passeava pelo sonho.
Belisquei-me. Doeu! Pensei em voltar a entrar em casa, mas quando dei um passo para trás, 
senti frio. Então, decidi aproximar-me. Desci, cautelosa, todos os degraus. À medida que me
 aproximava, ficava mais quente. Era como um bafo cálido que me envolvia todo o corpo.
Sem pensar, sentei-me ao seu lado. Foi então que vi que pelos seus dedos, a apontarem para 
aquela folha branca, desciam, brincalhonas e em grande algazarra, as letras que se 
amontoavam no seu centro. Riam, saltavam por cima umas das outras, abraçavam-se, 
beijavam-se e eu, incrédula, voltei a beliscar-me. Voltou a doer! Esfreguei os olhos, mas 
continuava a vê-las e a ouvi-las! Eram tão alegres e coloridas como o chapéu às cores.


Com muito cuidado, como se não quisesse perder nenhuma, recolheu, com as mãos em 
concha, todas as letras da folha e levou-as à boca. Começou a mastigá-las. As bochechas 
eram agora gordas e redondas e, sempre que os lábios se entreabriam, saltavam pequenos
pedaços, como raspas de lápis de cor, que caíam no chão. Os pássaros apressavam-se a 
recolhê-los e imediatamente ficavam azuis, tão azuis como o céu. Já não os via, mas sabia 
que eles estavam lá. E ele mastigava...e mastigava, arredondava com os dentes cada letra, 
moldava-as e colava-as com a saliva umas às outras. Depois, com dois dedos em forma de 
pinça, puxava pelo canto da boca, palavra a palavra, e com elas encheu a folha branca. 
Aproximei a cabeça do seu ombro e comecei a ler o texto. O que li era tão bonito, que 
depressa me chegou ao coração. Quis perguntar como se chamava e, quando finalmente o 
fiz, a voz saiu-me rouca, quente, como um sussurro.
- Como te chamas?
E ele respondeu - Poesia.
Naquele dia, acho que encontrei um poeta.


Sónia M



Nota:
Ilustração da responsabilidade do blogue "Alpendre da Lua", ao qual agradeço pela partilha deste meu conto.

12 março, 2013

Reflexo

Ao perceber o quanto vivera iludida, vestiu-se de preto e pouco saía à rua.
Sempre que o fazia,  falava com os pássaros, com as nuvens, com as flores 
e até com as ervas daninhas. As conversas eram sempre animadas.
Fechou-se no seu desgosto e aí permanecia sem qualquer intenção de lá sair.
Não sofria de desamores. O amor era o único que a mantinha viva.
Amava tudo, tanto...talvez até demais.
O seu desgosto era muito mais profundo e difícil de curar.
Acreditava que ao nascer, trazia as mãos cheias de "coisas", míticas, sábias.
Por isso cerrava os punhos pequeninos, para que nenhuma delas escapasse.
Mas à medida que ia crescendo, as unhas cravavam-se na pele, obrigando-a  
a abri-los aos poucos. 
E as "coisas" foram-se sumindo, uma a uma, entre os dedos.
Primeiro perdeu a capacidade de só ver o belo do mundo. Começou por notar
o lixo nas ruas, em como um homem todos os dias remexia nesse lixo nauseabundo 
e retirava lá de dentro alguma coisa, que levava diretamente à boca.
Todos os dias se cruzava com o mesmo homem, mas nunca antes reparara no
que ele fazia. Isso fez-lhe perder metade do sorriso. A outra metade perdeu-a
quando percebeu que ninguém se importava com aquilo.
Os olhos...serviam apenas  para iludir a verdade. Procuram o perfume das
flores e os rostos pintados das meninas bonitas. São incapazes de ver,
as mãos cheias de mentiras, ou como o mundo, lá fora, grita, geme e chora,
pela miséria dos homens e da alma.
Todos os dias, ao fim da tarde, se sentava num banco de jardim para dar comida
aos pássaros. Vendava os olhos e observava como o mundo era nada mais...
que um reflexo de si própria.

Sónia M


(imagem retirada da net)

07 fevereiro, 2013

O Pesadelo


Esta noite tive um pesadelo. Despertava e apenas ouvia silêncio.
Era muito mais que a ausência de sons. Era profundo, apertava cá dentro 
como um mau agoiro. 
Levantei-me lentamente e dirigi-me à janela. Lá fora as ruas estavam 
cheias de gente de braços abertos e mãos estendidas, a olhar o céu. 
Pareciam estátuas, ninguém se mexia nem falava.
Os carros não circulavam, as fábricas não produziam, o mundo inteiro havia 
simplesmente parado e toda a humanidade estava na rua de braços abertos 
e mãos estendidas, a olhar o céu.
Saí à rua descalça, o silêncio incomodava mais do que o frio, que fazia.
Era difícil caminhar por entre aquele aglomerado de gente. 
Acabei por andar pouco mais de um metro e parei. 
Confusa, tentei perguntar, à senhora ao meu lado, o que se passava, 
mas da minha boca não saía um único som! 
Por mais que abrisse e fechasse a boca, o único que cuspia era silêncio!
Comecei a sentir os pés molhados. Rapidamente aquela água já me chegava 
aos tornozelos! Parecia um rio, que nascia aos nossos pés.
Foi então que reparei que todos choravam, silenciosamente, sem
desviar o olhar do céu.
Elevei o meu olhar e as lágrimas brotaram também dos meus olhos.
O mundo havia mergulhado naquele silêncio triste, sem palavras, 
ninguém poderia voltar a falar da beleza das flores. O céu estava encoberto 
com uma nuvem gigante e dela caíam milhares de borboletas mortas.
Abri os braços e estendi também as minhas mãos, que a pouco e pouco 
ficaram cheias de cadáveres coloridos...
Quando acordei, tentei escrever o sonho imediatamente, para tentar não me esquecer dele.
Acordei incomodada!


Sónia M

Nota: Grata ao blog "Alpendre da Lua" pela partilha deste meu humilde texto.


08 janeiro, 2013

A pequena casa



A casa era pequena, escondida no meio de gigantes eucaliptos.

Em frente ao portão que dava acesso ao caminho, nascera um 
emaranhado de silvas, ocultando-o de quem passava na estrada.

O caminho de terra batida, avermelhada, terminava junto a uma
escadaria de pedra mármore, com 10 degraus, iluminados na noite
pela luz de uma ténue candeia. No pequeno alpendre, havia apenas 
uma cadeira de baloiço partida e um vaso com um cacto já morto. 
A porta de entrada, estava aberta, sempre aberta. 

Parecia uma casa abandonada e esquecida, sem nenhum resquício de vida.
Durante o dia, era apenas visitada pelos pássaros que pousavam no telhado 
e pelas borboletas que invadiam o jardim florido das traseiras, as únicas 
que sabiam da sua existência.

Na noite, por vezes os cães vadios, atraídos pela luz da candeiauivavam 
junto às silvas. Alguns, rodeavam o terreno, à procura de um atalho 
que os levasse até à entrada da casa.
Não havia atalhos e nenhum ousava cruzar as silvas.

Nessas noites, para os sossegar e poder dormir naquela paz solitária, 
de que se rodeava, pedia à brisa que soprasse mais forte e apagasse
a luz da candeia.
A noite ficava ainda mais escura, deixando os cães às cegas. 
Desorientados, procuravam a luz de outras casas, onde os deixassem entrar.
Na próxima noite a luz voltaria a acender-se, na esperança de não voltar a atraí-los.

Sónia M

Nota:
Recentemente, devido à afluência de comentários menos próprios, 
que em nada têm a ver com o que escrevo, desativei temporariamente 
o acesso aos comentários no blog.
A todos os amigos seguidores deste blog, que sempre me honraram 
com a vossa presença, deixo o meu pedido de desculpas, 
por os ter deixado também "às cegas".

(imagem retirada da net)