Conta comigo sempre. Desde a sílaba inicial até à última gota de sangue. Venho do silêncio incerto do poema e sou, umas vezes constelação e outras vezes árvore, tantas vezes equilíbrio, outras tantas tempestade. A nossa memória é um mistério, recordo-me de uma música maravilhosa que nunca ouvi, na qual consigo distinguir com clareza as flautas, os violinos, o oboé. O sonho é, e será sempre e apenas, dos vivos, dos que mastigam o pão amadurecido da dúvida e a carne deslumbrada das pupilas. Estou entre vazios e plenitudes, encho as mãos com uma fragilidade que é um pássaro sábio e distraído que se aninha no coração e se alimenta de amor, esse amor acima do desejo, bem acima do sofrimento. Conta comigo sempre. Piso as mesmas pedras que tu pisas, ergo-me da face da mesma moeda em que te reconheço, contigo quero festejar dias antigos e os dias que hão-de vir, contigo repartirei também a minha fome mas, e sobretudo, repartirei até o que é indivisível. Tu sabes onde estou. Sabes como me chamo. Estarei presente quando já mais ninguém estiver contigo, quando chegar a hora decisiva e não encontrares mais esperança, quando a tua antiga coragem vacilar. Caminharei a teu lado. Haverá decerto algumas flores derrubadas, mas haverá igualmente um sol limpo que interrogará as tuas mãos e que te ajudará a encontrar, entre as respostas possíveis, as mais humildes, quero eu dizer, as mais sábias e as mais livres. Conta comigo. Sempre.
Fotografia: Love is a Mistery, de Joachim G. Pinkawa
JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011) DIA 17 Estou preso à tua liberdade. Uma liberdade que me empurra para a luz quando o meu corpo respira sombra, e este é o trabalho mais oculto do mundo. O que chega aos poucos pode chegar depressa e às escondidas, com a rapidez da mordedura das víboras e do furor das moreias. Gostar de ti é uma ferida. Gostar de ti como se me deixasse morrer de morte iluminada que resultasse num cadáver amoroso, rodeado de uma luz perversa, estúpida, circundante. Estou entre o nada e a parede como um animal com todas as saídas, sem saber por qual delas deve sair. Com medo de sangrar e de gostar do próprio sangue. Com medo de ter medo. Toda a minha história é uma história de amor. (retirado daqui:https://www.facebook.com/pages/Quem-l%C3%AA-Sophia-de-Mello-Breyner-Andresen/112890882080018?ref=stream)
16 setembro, 2012
(Óleo s/ tela: But a Moment, Revisited, por Jenedy Paige)
JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)
Dia 46
São as pessoas como tu que fazem com que o nada queira dizer-nos algo, as coisas vulgares se tornem coisas impor-tantes e as preocupações maiores sejam de facto mais pe-quenas.
São as pessoas como tu que dão outra dimensão aos dias, transformando a chuva em delirante orvalho e fazendo do inverno uma estação de rosas rubras.
As pessoas como tu possuem não uma, mas todas as vidas. Pessoas que amam e se entregam porque amar é também partilhar as mãos e o corpo. Pessoas que nos escutam e nos beijam e sabem transformar o cansaço numa esperança aliciante, tocando-nos o rosto com dedos de água pura, soltando-nos os cabelos com a leveza do pássaro ou a firmeza da flecha.
São as pessoas como tu que nos respiram e nos fazem ins-pirar com elas o azul que há no dorso das manhãs, e nos estendem os braços e nos apertam até sentirmos o coração transformar o peito numa música infinita. São as pessoas como tu que nunca nos pedem nada mas têm sempre tudo para dar, e que fazem de nós nem ícaros nem prisioneiros, mas homens e mulheres com a estatura da vida, capazes da beleza e da justiça, do sofrimento e do amor. São as pessoas como tu que, interrogando-nos, se interrogam, e encontram respostas para todas as perguntas nos nossos olhos e no nosso coração. As pessoas que por toda a parte deixam uma flor para que ela possa levar beleza e ternura a outras mãos. Essas pessoas que estão sempre ao nosso lado para nos ensinar em todos os momentos, ou em qualquer momento, a não sentir o medo, a reparar num gesto, a escutar um violino. São as pessoas como tu que ajudam a transformar o mundo.
A cor do domingo é inspirada. Pequenos peixes improvavelmente florescem dos teus gestos, o teu corpo extasiado está ainda na minha memória e já não é corpo, é memória. Oiço o destino como se ouvem os guisos, os sinos e o vento. Sei que guardas palavras minhas nos cabelos, as que não couberam na tua cabeça, mas que estavam já grávidas de amor. Essas palavras são o meu ofício e a minha fala. Não poderei repeti-las. Pertencem a um momento único, filhas de um fogo puro, intenso e imenso. Com o barro da sombra vou fazer o sol, construir a casa para ti, para a tua ausência. Pintá-la com a cor deste domingo, madura e abundante. Vou escrever o mundo e inscrever-te nele, como se, antes de nós, o mundo não tivesse existido.