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15 agosto, 2014

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- Acorda...acorda...

Sussurrava a minha mãe no meu ouvido.
Beijou-me o rosto e eu abri os olhos. Quase não reconheci o quarto. O único que restava nele, eram as paredes brancas e o colchão no chão, onde eu havia dormido. Vesti-me com movimentos lentos e ao sair do quarto, apeteceu-me chorar. A casa estava praticamente vazia. Uma ou outra caixa no chão, era tudo o que restava. Lá fora, o meu pai e uns quantos homens, tentavam acondicionar os pertences de uma vida, numa carrinha de mudanças. Um dos homens entrou e levou as últimas caixas.

- Já está tudo! Estas são as últimas.

Voltou a apetecer-me chorar. Percebia agora, com a casa vazia, que era tanto o que ali deixava. Pensei que iria viver ali para sempre, mas, talvez, eu ainda não soubesse bem o que significava “para sempre”. O “sempre” é uma ilusão. A maior ilusão do Homem, que gosta de fingir que não sabe, que tudo acaba. 


Enquanto a minha mãe entrava em todas as divisões da casa, uma a uma, para ter a certeza que não deixava nada, eu sabia que estávamos a deixar tudo. Aquele “S” que a minha mãe tanto tentou disfarçar, na madeira da janela da sala, era meu! Fui eu que o fiz com o bico de um lápís. A cicatriz na minha testa, era do balcão do pátio, de onde eu caí, e daquela pedra bicuda no chão, que me ofereceu os 4 pontos, que eu tanto exibi aos amigos. Acabamos por ser o lugar e o lugar somos nós. E eu não sabia como me despedir de mim mesma, ou como meter um lugar na bagagem. Podemos Ser em todos os lugares, mas o que acontece a um lugar depois que partimos? Quando já lá não Somos? E a nós, o que nos acontece a nós?  

São precisos muitos lugares e pessoas para aprender que continuamos a ser o lugar...todos os lugares por onde passamos. Apesar de terem borrado a minha passagem da maior parte deles, eu conservo as cicatrizes de cada um, no corpo e na memória. E no tamanho da alma que, por onde passa, cresce. Mais tarde descobri o que acontece aos lugares 
-  todos encolhem.
(...)


Sónia M
(memórias de uma menina)

12 agosto, 2014

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(...)
Quase todas as casas tinham um quintal, com um tanque, onde as mulheres lavavam a roupa logo pela manhã. Com algumas árvores e uns quantos animais, que acabavam por ir a parar à mesa. Descobri isto da pior maneira. Quando percebi que o “fofo”, o coelho que eu às escondidas tirava da coelheira, para brincar no quintal, tinha sido o manjar servido num almoço de domingo. Foi um trauma. Um trauma, que o meu irmão mais velho, explorou ao máximo nos dias seguintes. Que alegre que ele andava com o meu desgosto.

- As patinhas fofas do fofo eram mesmo fofas, não eram, maninha?

As piadinhas sem graça pareciam não ter fim. Fazia-nos a vida negra às duas, a mim e à minha irmã, mas, na rua, era o nosso anjo da guarda: que ninguém nos tocasse!
Decidi que nunca mais daria nomes aos animais. O pior foi saber que a minha mãe me mentia, quando dizia que tinham fugido, quando na verdade, há muito que eu andava a comer os meus amigos de brincadeiras. Um trauma. Mas é assim. Acordar para a vida (dos adultos), é sempre um trauma.

Sónia M
(memórias de uma menina)

(Pintura de Donald Zolan)

27 maio, 2014

O Suicídio das aves



Vejo a memória como um corredor, com paredes cheias de janelas assimétricas. Muito comprido, a terminar no lugar onde agora me encontro. À minha frente há um muro que pulsa, como se tivesse dentro um coração, e, se a ele lhe encosto o peito, desfaz-se numa nuvem branca, voltando a formar-se um pouco mais à frente. E assim avanço, sem nunca saber o que haverá para além deste muro que pulsa, que o único que me pede, é que a cada dia que passa, junte o pulsar do meu peito ao dele, em troca de mais uns passos.

Há momentos em que gosto de virar as costas ao muro. Entretenho os dedos a contar as janelas, e os olhos, com o tamanho do corredor, que de cada vez me parece mais comprido. Às vezes há uma janela que se abre por este ou aquele motivo. Pode ser um cheiro, uma palavra, um bater de asas de um pássaro, um riso de uma criança ou um céu mais estrelado. Não é preciso muito, para que uma dessas janelas se abra e me deixe olhar para mim , num tempo que já não existe. De todas as viagens que já fiz, é esta, a que faço por este corredor, espreitando pelas janelas, guardiãs de todas as viagens, a que considero verdadeiramente mágica. Nesta viagem, encontro tudo o que aprendi e o que não consegui aprender. Provavelmente, este momento, ficará também fechado dentro de uma janela, como a memória que viajou até se encontrar na primeira...
Esta é a minha primeira janela. Antes dela, não há mais nada.

Cheirava a bolo de chocolate e a café. Levantei-me da cama e corri para a cozinha. Abracei-me à minha mãe, que preparava o pequeno almoço.
- Onde está a mana?
- A mana está na casa de banho. Não te esqueceste que dia é hoje pois não?
- Não esqueci, não! E o pai?
- O pai está no quintal a tratar dos animais.
Mal ouvi que o meu pai estava no quintal, corri para fora da cozinha, atravessei a sala de jantar e ao chegar ao corredor que dava acesso ao quintal, ouvi o grito da minha mãe.
- Não vás para o quintal descalça!
Mas eu fingi que não a ouvia. O quintal era para mim o paraíso e no paraíso não se precisa usar sapatos. Abri a porta do quintal e saltei por cima dos três degraus da entrada, acabando por cair. Não chorei, que aquele não era dia de chorar. Fiquei no chão a olhar para a árvore no centro do quintal. Era enorme. E eu sabia que ela tocava o céu, como o pé de feijão da história que a minha mãe me contou. Só que lá em cima não havia gigantes maus. A minha árvore, era o caminho para um lugar onde todos eram bons e tinham asas, como os pássaros, que faziam ninho nos seus braços, que davam sombra a quase todo o quintal. 

Ao avistar o meu pai levantei-me e corri para ele. Ainda não o tinha alcançado quando ouvi a D. Joana, a vizinha da frente, entrar em minha casa aos gritos. O meu pai largou tudo. Passou por mim a correr, sem me ver, e entrou em casa. Eu segui-o, sem perceber o motivo de tanta aflição. Continuei a segui-los a todos, quando saíram a correr para o pátio da frente. E continuei a segui-los, quando atravessaram a estrada e entraram em casa da D. Joana, que parecia histérica. Entrei a tempo de ouvir o meu pai gritar.
- Não o faças!
E de o ver arrombar a porta do quintal. Quando a porta se abriu, vi o Sr. Zé, o marido da D. Joana, pendurado no alpendre, por uma corda no pescoço. Estava nu, com uma toalha enrolada à cintura e as pernas estrebuchavam violentamente. O meu pai agarrou-lhe de imediato as pernas e tentou tirá-lo da corda. O Sr. Zé era um homem muito gordo, não sei onde foi o meu pai buscar tanta força nos braços, para o conseguir elevar e tirar-lhe a corda. Deitou-o no chão e tentou reanimá-lo, mas em vão. Entretanto todos os vizinhos da rua, já haviam entrado na casa. Uns diziam que se havia matado, outros que o pescoço se partiu, outro que já tinha chamado a ambulância e no meio daquilo tudo ninguém notava a minha presença. Eu era tão pequena. Pequena demais para entender o que se passava. O único que sabia era que o meu pai estava a fazer uma coisa importante e que todos aguardavam, que aquilo que o meu pai fazia ao Sr. Zé, o fizesse mexer novamente, mas o Sr. Zé não se mexia. Entretanto alguém me agarrou pelo braço, a mim e à minha irmã, e nos levou para nossa casa. Eu nem havia notado a presença da minha irmã, ainda não a tinha visto e aquele dia era dela. Ouvi-a dizer baixinho,
- Ninguém se lembra que eu faço anos...
- Eu lembro...Parabéns!-
- Mas agora já não é a mesma coisa...

O facto de ser o aniversário da minha irmã, faz-me situar no tempo com precisão. A minha irmã fazia 9 anos e daí a 3 meses eu faria 4.
Foi a minha madrinha que nos levou para casa. Eu sabia que o Sr. Zé estava morto e que nunca mais o íamos ver. Era isso que queria dizer “estar morto”. Deixávamos de ver as pessoas, só não sabia para onde é que elas iam, mas deixávamos de as ver. E o Sr. Zé não queria que ninguém mais o visse. Fiz mil perguntas à minha madrinha sobre o que se passou, mas nenhuma resposta me pareceu convincente, então fui para o quintal, para junto da minha árvore mágica.

Em redor do tronco, algumas raízes furavam a terra. Uma delas, um pouco mais saliente, tinha uma curvatura, que parecia feita à medida do meu corpo e eu sentava-me muitas vezes ali, como se estivesse ao seu colo. Gostava de olhar os ninhos dos pássaros e aqueles braços enormes, que se agitavam ao sabor do vento, como se lutassem contra dragões, protegendo-me. A árvore estava agitada, lutava violentamente contra o vento. De repente parou, como se tivesse perdido a batalha. Ao mesmo tempo, algo caía em direcção da minha cabeça e eu saltei-lhe rapidamente do colo. Caiu estatelado na terra. Era um pássaro. Cheguei perto, toquei-lhe com um dedo, mas tal como o Sr. Zé, ele não se mexia. Durante algum tempo fiquei ali, a olhar para ele, até que os braços da árvore se voltaram a movimentar, desta vez, suavemente. E foi assim, com um bailado de folhas e braços, que a minha árvore mágica me contou um segredo, que tinha guardado no tronco. Um segredo, que só uma menina de quase 4 anos conseguia ouvir.

Para cada homem há uma ave, que nas asas lhe guarda a bondade, a coragem e a pureza. Sempre que um homem desiste e não se deixa mais ver, há uma ave que se suicida.”

Venha quem desdiga a menina, quem desminta os segredos que por si descobre. Ou quem lhe diga que são mentiras, as verdades que só ela conhece.

Foi aí que chorei. E se o mundo ficar sem pássaros?


Sónia M
Texto integrado na Antologia "Aquela Viagem", Papel D'Arroz Editora

24 novembro, 2013

A Senhora dos Pássaros

                                                                   Pintura, R Bassani


Ao menino traquinas.
E à Senhora dos Pássaros, que amanhã cumpre 66 anos.


A senhora dos pássaros saía de casa, trazendo as gaiolas uma a uma. Limpava-as, enchia os comedouros com umas sementes, água fresca e pendurava-as no alpendre. Têm que ficar à sombra, dizia, o sol pode matá-los. Eu sentava-me, gostava quando ela lhes falava e eles pareciam responder, num idioma, que só ela entendia, ao qual acabei por chamar de "passarês". Decididamente a senhora dos pássaros entendia "passarês" e os pássaros entendiam  português. Eram tão bonitos! Cheguei a querer brincar com eles, mas estava proibida de lhes tocar. Isso causava-me alguma angustia, talvez até um pouco de desespero, tal era a vontade que tinha de lhes deitar a mão. Não percebia o porquê daquela proibição, que mal faria?

Um dia a rotina foi ligeiramente alterada por umas pequenas caixas de madeira quadradas. Feita a limpeza das gaiolas, a senhora dos pássaros, enganchou em cada gaiola uma caixa, pelo lado de dentro.  Na verdade, pareciam pequenas casinhas, mas, em vez de porta, tinham um  buraco redondo, que eu não percebia para que servia. Fiquei de tal maneira intrigada, que nos dias seguintes, imaginei mil e uma utilidades para as casinhas do buraco redondo. Talvez seja o hospital, pensava, é ali que vão curar as asas, ou talvez uma despensa, deve estar cheia daquelas sementes. Ou então é um quarto para dormir, como só lá cabe um, talvez durmam à vez! Os dias passavam, mas a minha curiosidade não passava com os dias.

Foi numa manhã solarenga, com um céu tão azul como os olhos da tia Elvira, que a minha curiosidade foi finalmente saciada. Sempre que via um céu assim, vinha-me à memória a tia Elvira. Que me perdoassem todas as outras tias, mas aquela era a mais bonita. Trazia o céu nos olhos e o sol nos cabelos. Chegou a ser contratada como modelo fotográfico, pelas fábricas de malhas da zona, onde a maior parte das mulheres que eu conhecia trabalhavam, incluindo a minha mãe. Ouvia frequentemente os mais velhos dizerem, "aí vem a 'Vira pequenina, é tal e qual a tia, tem até o seu sorriso". Considerava tais comentários como uma blasfémia, palavra que ouvira ao padre na missa de domingo e que desde então usava com alguma frequência, ainda que muitas vezes fora de contexto. Fora de contexto estavam tais comparações, uma era loira e alta -parecia-se às mulheres que o meu irmão mais velho pendurava nas paredes do seu quarto, mas mais vestida -  e a outra era morena, minorca e franzina. Uma tinha olhos azuis, outra verdes.
Enquanto uma exibia um sorriso luminoso com todos os dentes, a outra, eu, esperava dentro do que me parecia uma eternidade, que me crescessem os dentes da frente. Divagava eu naquela manhã, entre o céu e os olhos da minha tia, quando a senhora dos pássaros me chamou 
- Anda cá, tenho uma coisa para te mostrar.

Ela estava junto a uma gaiola. Quando cheguei perto, puxou a parte de trás da caixa de madeira, que pelos vistos era amovível e pediu-me para espreitar. Se eu soubesse disto antes, pensei, quantas vezes não teria eu puxado a parte de trás da bendita caixa?! Assim que espreitei, pensei logo em enfiar a mão lá dentro e se bem o pensei, melhor o fiz. Quando saquei a mão, já trazia nela, um dos três misteriosos inquilinos da casinha. Eram moles, com uma pele lisa que me arrepiou.  

- O que é isto? 
- Isto é um pássaro bebé. Agora volta a pô-lo lá dentro antes que a mãe dele se zangue contigo.

Um bebé! Afinal o mistério das caixas de madeira estava resolvido, eram maternidades! Se bem que "aquilo" em nada se assemelhava a pássaros, nem penas tinham. Eram assim como eu e a minha tia Elvira: semelhanças? nenhumas! 
Tranquilizou-me a senhora, dizendo que as penas iriam crescer e que ficariam tão bonitos como todos os outros. E depois? O que aconteceria aos novos pássaros depois de crescerem? Depois de perguntar, fiquei a saber, que seriam entregues a novos donos. A D. Joana, a vizinha da frente, já tinha uma gaiola à espera de um...

Naquela noite tive dificuldade em dormir. Não podia deixar de pensar que era assim que tudo começava. Cresciam-lhe as penas, ganhavam asas e depois viviam toda a sua vida dentro de uma gaiola. Não fazia nenhum sentido. Para que teriam asas, se jamais iriam voar? Acordei de mau humor, sem apetite, cabisbaixa, não mostrei o meu sorriso desdentado nem uma única vez. Foi de tal maneira notória a minha inércia, que passei o dia a ouvir, 
- Dói-te alguma coisa? - De certa forma até doía.
- O que tens? Vá, onde está esse sorriso lindo? - Eu podia lá sorrir. 
- Deixa ver se tens febre, acho que a cachopa está doente! - Não tinha febre, estava triste. 
De repente lembrei-me de uma frase que alguém um dia me sussurrou,"és responsável por aquilo que vês", jamais entendi o seu significado, até àquele momento. Estava decidido. Eu tinha que fazer alguma coisa.

Na manhã seguinte acordei, tomei o pequeno almoço e às escondidas calcei os sapatos da coragem. Eram uns sapatos especiais, vermelhos, com uma fivela prateada de lado, que a minha mãe só me deixava calçar no domingo para ir à missa. Sempre que os calçava, sentia que tinha o mundo a meus pés, era capaz de tudo! Era deles que eu precisava naquela manhã. Sentei-me lá fora, no quintal, e esperei pacientemente que a senhora dos pássaros desse inicio à sua rotina.
Tinha tudo planeado, bastava esperar pelo momento certo, momento esse que seria a limpeza das gaiolas, só tinha que ser rápida. Assim foi. Mal a vi retirar o fundo das gaiolas e afastar-se com eles para os ir lavar, precipitei-me rapidamente para a primeira, agarrei a asa que tinha no topo e levantei a gaiola! Se há momentos que gravamos na memória para toda a eternidade, este foi um deles. Foi como se o mundo parasse à minha volta, o único que ouvia, era o bater das asas
dos oito pássaros que sobrevoavam a minha cabeça, como que em sinal de agradecimento, e que eu acabara de libertar. Tinham as asas abertas, as suas penas coloridas em contraste com o azul do céu, fizeram daquele momento, um momento mágico! 

Fiquei estática, a segurar a gaiola vazia na mão, enquanto os via partir, o que não me foi nada favorável. Quando comecei a voltar a mim, já a dona dos pássaros andava à minha volta aos gritos -  O que foste fazer desta vez?! Soltaste-os! Vão acabar por morrer todos, não sabes? 
Estava tramada, não só não me podia declarar inocente, pois tinha a gaiola na mão, como já não podia soltar os outros, era demasiado arriscado, pensei. E a reprimenda teria ficado por ali, não fosse dar-se a feliz coincidência da senhora dos pássaros ser minha mãe. Aquilo ia render-me um valente castigo.

Foi muito o que aquele dia me ensinou. Por exemplo, que ser adulto significa não se saber ao certo o que se quer. No dia anterior pediam tanto o meu sorriso e agora tinha que o dissimular, ou ainda se zangavam. Também, que nem todos conseguem ver o mundo da mesma maneira. Descobri com aquele voo de liberdade, que não esqueço, que todas as prisões têm uma porta e que todos os cadeados podem ser quebrados.  Tudo o que fazemos em consciência, transforma-nos e connosco avança, sendo parte de nós. 

E quando alguém me pergunta quem sou, ainda hoje me apetece responder
 - Sou a filha da Senhora dos Pássaros.

Sónia M
(Algures no tempo...)



                                                                  O meu traquinas