A escada de madeira, apesar de lhe ser entregue a mais leve e a mais pequena, tinha o peso da dor de mil inocências perdidas.Carregava-a,
tentando equilibrá-la, até chegar à próxima oliveira,
num chão que se agarrava às botas de borracha.
Fazendo com que o próximo passo fosse ainda
mais penoso que o anterior. Cada passo dado
somava peso, que o seu corpo pequeno e franzino,
suportava apenas através do pensamento: - Eu consigo! Era como se a terra a quisesse tragar de vez e assim a libertar daquele martírio. Ainda assim, insistia em permanecer à superfície. - Este é o meu chão e a escada a minha cruz. Talvez todos sejamos um Cristo, a carregar misérias às costas, não pecados. E em algum lugar do caminho, alguém nos espere para nos crucificar, como castigo, por sermos pobres.
- Mãe, tenho frio, já não sinto as mãos. - Aguenta só mais um pouco.
Estamos quase na hora de almoço.
E o coração minguante da mãe, num pranto contido,
carregava a dor de todas as mães, que não conseguem
levar os filhos a pisar outro chão,
a não ser o que elas próprias pisam.
Sónia Micaelo Excerto de: "Memórias de outras vidas" (a editar)
no amor dos poetas há borboletas a esvoaçar nas entranhas estrelas a secar lágrimas antigas almas que se reconhecem sem fala línguas que absorvem a dor num beijo...
e eu que a vida toda só senti amargura nos lábios houve noites que quis ser poeta...
mas nunca senti a borboleta ou a estrela acredita quando te digo que só a solidão me falou à alma...
mas hoje da tua voz choveu sol...
nem sei se sabes
que tens um sol escondido na fala
podia jurar que a alma me dançava nos olhos
e não estava sozinha
na primeira folha branca que encontrei escrevi:
"espero por ti como quem espera o sol depois da noite mais escura..."
não há nada melhor que uma folha em branco uma página ou um livro inteiro por escrever
chovia e chovia... e eu sentia na boca a língua do sol
por um instante senti as entranhas e quase quase...me senti poeta.
Cheguei à janela da manhã e olhei para o chão sem espaço. Um pássaro pousou-me nos dedos e quebrou-me o silêncio do corpo. Quis sussurrar-me um segredo no peito, para que bem o ouvisse e partiu. "Numa terra sem chão, voa!", disse. E eu...segui-o.
De tanto olhar pelo olho de vidro da dor secaram-se-me os olhos. Faço-me e desfaço-me em pele por vestir um olhar apagado no passar dos teus dias onde não me acho real. O tempo habitua a dor para que já não doa. Depois que se entende tudo é um denso vazio a apontar o lugar onde antes havia uma ferida. Ali esgravato para que sangre sobre a folha duas ou três gotas de um verso só onde um mundo gira ao contrário para chegar ao encontro das horas. Amarro o teu nome à palavra instante antes que durma e até por detrás do véu dos sonhos o instante não é nome ou palavra mais ou menos que seja do que aquilo que na minha noite mergulha: - coisa nenhuma. O relógio marca a ilusão de um amanhã que não chega. Ainda assim te digo
Foi aí que chorei. E se o mundo ficar sem pássaros?
Sónia M
**************
Este céu tem penas que choro.
Aos milhares caem aos pés dos que já não caminham. Dói tanto ver o voo das aves perdidas de dor. Faças o que fizeres onde quer que tu vás não olhes este céu de agora.
Pássaros desfazem-se em penas, não queria que visses, meu bem. Não olhes agora! Dói ver o voo de tantas aves órfãs…
Ergo a tristeza como a pior das bandeiras. Arrasto-a pelo meio do caos desta Primavera com cheiro a medo. É sangue o que corre nas mãos do homem que semeia vazios no coração das flores... Ando cansada do tempo. Do tempo que passa sem nada que diga vida. Uma e outra vez grito para dentro a mesma pergunta e nos vagos intervalos desta chuva vermelha, oiço como a resposta sangra nas ruas. Afinal do que tens medo? - Grito. Deste vazio... - Sangra. Quanto Amor trazes nas mãos? Não digas que o Amor nada salva! Se juntares o meu ao teu derrubamos o medo e salvamos as flores.
No dia em que emudeceste a cidade um sonho atormentou-me a noite havia uma margem onde uma frondosa árvore em desespero tentava abraçar o vento e o vento passava e ria intocável um pássaro trazia a manhã à janela de um rio onde tu banhavas o verbo - ventre do poema mais secreto e indomável e a vida, meu bem esse fogo tão bendito quanto maldito ia secando todas as águas... trouxeste o tempo para dar de beber aos peixes - esse quase nada onde quase tudo assenta - e um muro de espelhos ergueu-se! ao olhar o meu reflexo no muro arranquei os olhos para não voltar a ver-me eu era o germe do silêncio que chorava versos mudos condenado a roer a memória mais funda até que o verbo... já não doa. Sónia M
Hoje bastava um pouco mais de céu. Um pouco mais do sonho, que se lê no papel envelhecido. Um pouco mais de Amor e sararia as feridas dos pássaros brancos, que de vermelho vão tingindo a terra. Um pouco mais, do que o tilintar dos copos. Ou do que o riso demorado, que o caçador de estrelas mortas, ouve sair das janelas, na rua quase deserta. Hoje bastava um pouco mais de tudo, ou um pouco menos de tanto... Recomeça, porque hoje tudo recomeça. Leva a coragem, como companheira de viagem. Sónia M
vê como passa o tempo como a chuva teima em esconder a luz que deixas quando passas como são longe os caminhos como as distâncias queimam todas as pontes deixando as margens numa solidão aguada e vê como tudo se altera como tudo muda ou como tudo regressa quando uma pequena brecha na memória se abre e um pequeno vento se escapa e te sopra uma suave melodia antiga e como se não existisse outro tempo a não ser o das madrugadas onde os olhos se abraçam e as margens cantam inventas uma rua regressas ao início e fazes o que sempre fazias - danças! Sónia M Imagem, Oleg Bazylewicz (1964-) - 1+1 (2011)