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30 outubro, 2021

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volta a ser noite 

e a alma quase se afoga

no beijo 

na língua 

na curva do seio


opaca pele 

que uma boca devora

silene gemido

a rasgar silêncios de bruma


volta a ser noite 

e duas esmeraldas se fecham


que mãos?

que saliva 

incendeia o cansaço?


volta a ser noite

e eu tão inteira...


no disfarce vazio

quem tomba no leito?


©Sónia Micaelo 

14 julho, 2021

Este é o meu chão

 




A escada de madeira, apesar de lhe ser entregue 
a mais leve e a mais pequena, tinha o peso da dor 
de mil inocências perdidas.Carregava-a, 
tentando equilibrá-la, até chegar à próxima oliveira, 
num chão que se agarrava às botas de borracha. 
Fazendo com que o próximo passo fosse ainda 
mais penoso que o anterior. Cada passo dado 
somava peso, que o seu corpo pequeno e franzino, 
suportava apenas através do pensamento:
- Eu consigo! 
Era como se a terra a quisesse tragar de vez 
e assim a libertar daquele martírio. Ainda assim, 
insistia em permanecer à superfície. 
- Este é o meu chão e a escada a minha cruz. 
Talvez todos sejamos um Cristo, 
a carregar misérias às costas, não pecados.
E em algum lugar do caminho, alguém nos espere 
para nos crucificar, como castigo, por sermos pobres. 

- Mãe, tenho frio, já não sinto as mãos. 
- Aguenta só mais um pouco. 
Estamos quase na hora de almoço. 

E o coração minguante da mãe, num pranto contido, 
carregava a dor de todas as mães, que não conseguem 
levar os filhos a pisar outro chão, 
a não ser o que elas próprias pisam.
 
Sónia Micaelo 
Excerto de:
"Memórias de outras vidas"
(a editar)


*

Fotografia,  ©Nuno Clavinas

16 outubro, 2020

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no amor dos poetas
há borboletas a esvoaçar nas entranhas
estrelas a secar lágrimas antigas
almas que se reconhecem sem fala
línguas que absorvem a dor num beijo...

e eu
que a vida toda só senti amargura nos lábios
houve noites que quis ser poeta...

mas nunca senti a borboleta ou a  estrela 
acredita quando te digo
que só a solidão me falou à alma...

mas hoje
da tua voz choveu sol...
nem sei se sabes 
que tens um sol escondido na fala
podia jurar que a alma me dançava nos olhos
e não estava sozinha 

na primeira folha branca que encontrei 
escrevi:

"espero por ti
 como quem espera o sol
 depois da noite mais escura..."

não há nada melhor que uma folha em branco
uma página ou um livro inteiro por escrever

chovia e chovia...
e eu sentia na boca a língua do sol 

por um instante senti as entranhas
e quase quase...me senti poeta.


©Sónia Micaelo 
(texto e imagem)



28 julho, 2020

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(Excerto)

Cheguei à janela da manhã e olhei para o chão sem espaço.
Um pássaro pousou-me nos dedos e quebrou-me o silêncio do corpo.
Quis sussurrar-me um segredo no peito, para que bem o ouvisse e partiu.
"Numa terra sem chão, voa!", disse. 
E eu...segui-o.

Sónia Micaelo
(Texto e imagem)


10 julho, 2020

Paradoxos







Em algum lugar, folhas caídas, tentam ainda trepar as árvores. 

Não sei se é a folha que procura a árvore, 
ou a árvore que procura ainda a folha... 
Há buscas que nunca encontram caminhos...
Caminhos que ninguém procura.  Sonhos que ninguém persegue...
Estações com comboios que vão e vêm de lugar nenhum. 
Partidas sem regresso e regressos a apeadeiros vazios. 
Braços que ninguém espera e abraços que ninguém esperava... 
Dias que não chegam e amores que nunca o serão.

Janelas voltam a fechar-se e abrem-se portas. 
Praças enchem-se de gente e mais gente.  Tanta gente, 
de novo tão invisível no outro. Da janela, todos os dias, 
avistava uma mulher, com um chapéu na cabeça de uma cor indecifrável. 
Reconhecia-lhe o andar cambaleante, de quem vai bêbada de saudade 
e amarguras.  Sem a janela...sem a janela já não a encontro!
Não sei se morreu ou voltou à transparência da rua. 

Mas nada disto importa!

Mais ao longe, o verde de uma oliveira 
resiste estoicamente à paisagem alaranjada. 
Mesmo que eu não queira, o sol já inundou os campos e as esplanadas, 
onde umas mãos te rodeiam agora o pescoço... 
e um homem de sorriso amarelo, tenta vender, por entre as mesas, 
a solidão da rosa em pranto, pela falta de raiz. 
A um canto da esplanada ali está ela!  Uma mesa vazia.
Que talvez, por distração ou respeito,  ninguém quis ocupar. 
Talvez me espere ... e ali te escreva mais um verso que ninguém lê. 

Mas eu sei, eu sei...que nada disto importa!

Muito ao longe, no firmamento, céu e mar fazem-se uno, 
sem deixar o mínimo rastro deste lugar, onde comungam o amor e o ódio; 
o céu e o inferno; a mulher do chapéu de cor indecifrável e um dia que não chega;
um comboio sem paragem e tu e eu.

Tudo isto sem rastro.
Tudo isto sem nós... 


©Sónia Micaelo 
(Texto e imagem)

No vídeo
com voz ⤵️


27 junho, 2020

O GESTO





Fazer o gesto é muito mais que fazer um gesto.
É a solidão da mão; um breve aceno em ar vazio;
o desenho transparente  do adeus, ao que nunca esteve.
Porque uma alma inquieta nunca está.  Por isso parte.
Uma e outra vez,  parte 
                              e parte e parte!
Tem toda uma vida para estar. Uma única vida. Mas parte.

Pudesse a mão ser um dia carícia; um sol antigo na pele.
Pele na pele a tremer no peito e um fio de loucura 
a abraçar o corpo rendido. 
A mão...a mão guarda o cosmos.
O principio ou o fim do sonho...

Fazer o gesto, 
a mão,
um breve aceno...
Como se entre o estar e o partir, 
amar fosse a única demência 

da qual foges...



© Sónia Micaelo




07 maio, 2017

AS MÃES

       
 



AS MÃES


as mães fazem remendos bonitos
em almas rasgadas
com linhas que arrancam do peito

as mães sangram sem que se veja
colocam as mãos nos seus colos já vazios
e esperam que regresse um sorriso que as cure

as mães alimentam-se de pequenas palavras
{que quase nunca dizemos}
e de abraços
{que quase nunca damos}

as mães iludem a fome
{que poucas vezes matamos}
lembrando as canções de embalar
que já não ouvimos

as mães são presente
passado e futuro sempre presentes
até ao último suspiro 
curam sempre sempre sempre
mais do que podem

e quando estendem os braços
as mães são a casa 
de onde nunca partimos 

as mães são eternas 
{também morrem as mães?}
e amamos as mães e a sua magia 
sem nunca haver tempo para lho dizermos...

Sónia M

Ilustração, "Crush" by Katie m. Berggren


21 abril, 2017

Foto do dia.

A raiz é livre como um pássaro!
O sonho mostra o caminho.
Chega Abril. A liberdade é já ali.

Até amanhã ❤

17 abril, 2017





Foto do dia.

Paciente, uma ave nocturna
pousa no vestido da tarde...
Esperará  que o dia se dispa
aos seus olhos arregalados de lua?


Sónia M

17 março, 2017

...






D  ar-te-ia uma noite clara 
I  senta de gritos e no 
Z  elo das margens do rio 

Q  ue te banha a alma, beijaria 
U  m a um os teus medos. Por 
E  ntre a sede das mãos, escorreria 

A  verdade que entregámos aos pássaros.
I  nstante de luz a ofuscar os dias. 
N  esga de loucura a guardar os sonhos. 
D  eitaria às águas um verso branco.
A  stro fecundo nos meus verdes olhos. 

M  istério encostado ao céu da boca do 
E  ncanto, com que envolves 

A  s minhas mãos vazias. 
M  orresse a lonjura no abraço do verso.
A  ntes não fosses um destino 
S  em tempo. Pátria perdida...à qual nunca regresso. 

Sónia M 

Imagem, © Łukasz Gliszczyński

02 novembro, 2016

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De tanto olhar pelo olho de vidro da dor
secaram-se-me os olhos.
Faço-me e desfaço-me em pele por vestir
um olhar apagado no passar dos teus dias
onde não me acho real.

O tempo habitua a dor para que já não doa.
Depois que se entende tudo é um denso vazio
a apontar o lugar onde antes havia uma ferida.

Ali esgravato para que sangre sobre a folha
duas ou três gotas de um verso só
onde um mundo gira ao contrário
para chegar ao encontro das horas.

Amarro o teu nome à palavra instante

antes que durma
e até por detrás do véu dos sonhos
o instante não é nome 
ou palavra mais ou menos que seja
do que aquilo que na minha noite mergulha:
- coisa nenhuma.

O relógio marca a ilusão 
de um amanhã que não chega.
Ainda assim te digo

até amanhã...

Sónia M


27 setembro, 2016

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Acende para mim uma luz, que o caminho é escuro
e nenhum verso te encontra.
- A luz mais lavada, que nos olhos me abra
uma certeza maior, que a da solidão da folha.


A mim, que nunca um deus me falou
basta-me saber da aranha para acreditar na teia, 
ouvir o trovão para saber da chuva.
E em tudo isto acredito. 

Ensina-me, se souberes, a rezar a todos os deuses.
Que eu só sei falar ao vento, das estações que depressa passam. 
De joelhos, como quem reza ou suplica,  deixarei uma prece
 aos pés da pedra. Farei de tudo, bem vês, que os meus frágeis ossos, 
não suportam mais o peso, da ilusão que escorre pelas paredes da casa.


- Acende para mim uma luz,  que  já nenhum verso a encontra. 
A luz mais lavada, a mais pura.
Acende...e que seja verde.
Uma luz a mover corações de pedra.


Texto e imagem , 
Sónia M





15 julho, 2016

Não olhes agora.





Foi aí que chorei. E se o mundo ficar sem pássaros?


Sónia M

**************
Este céu
tem penas
que choro.

Aos milhares caem aos pés
dos que já não caminham.
Dói tanto ver o voo das aves perdidas de dor.
Faças o que fizeres
onde quer que tu vás
não olhes este céu de agora.

Pássaros desfazem-se em penas,
não queria que visses, meu bem.
Não olhes agora!
Dói  ver o voo de tantas aves órfãs…



Sónia M


Imagem, Pinterest



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Estou repleta de ausências
de saliva
de abraços de papel.

Dou por mim a querer coisas como
o rasto breve de uma estrela cadente
segurar  o brilho das águas do rio que amas
sem  molhar  a ponta dos dedos.
O que hoje sei é das coisas mais estúpidas.


Nenhuma metáfora te aclarará a noite
nem te  calará o grito.
Nada que conheço me fará beijar-te os medos.
Não há manhã que nos espere
para nos guardar a ternura.

Na verdade – e é a verdade o que mais assusta-
nunca serei mais que a tua  aprendiz de poeta.
Escrevo água e nascente
enquanto a boca bebe da fonte mais seca
e por ti  vai morrendo  de sede.


Sónia M 

Ilustração, Sean Yoro



30 junho, 2016

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Cai-te a noite da algibeira.

Estrelas costuram memórias
à franja prateada da lua.

Chamas ainda por nomes
que o tempo
num último instante devora…

Ficas tu e um poema.

Uma boca que derrama um beijo
sobre o rio das horas sós…

Sónia M


Imagem, ©Jennifer B Hudson

22 março, 2016

22 de Março



Ergo a tristeza como a pior das bandeiras.
Arrasto-a pelo meio do caos 
desta Primavera com cheiro a medo.

É sangue o que corre nas mãos 
do homem que semeia vazios
no coração das flores...

Ando cansada do tempo.
Do tempo que passa 
sem nada que diga vida.

Uma e outra vez grito para dentro 
a mesma pergunta
e nos vagos intervalos desta chuva vermelha,
oiço como a resposta sangra nas ruas.

Afinal do que tens medo? - Grito.
Deste vazio... - Sangra.

Quanto Amor trazes nas mãos?
Não digas que o Amor nada salva!
Se juntares o meu ao teu
derrubamos o medo
e salvamos as flores.


Sónia M

Imagem, ©Plantu

10 janeiro, 2016

O SILÊNCIO

No dia em que emudeceste a cidade
um sonho atormentou-me a noite

havia uma margem
onde uma frondosa árvore
em desespero
tentava abraçar o vento

e o vento passava e ria 
intocável

um pássaro trazia a manhã à janela de um rio 
onde tu banhavas o verbo
- ventre do poema
mais secreto e indomável 

e a vida, meu bem
esse fogo
tão bendito quanto maldito
ia secando todas as águas...

trouxeste o tempo para dar de beber aos peixes
- esse quase nada onde quase tudo assenta - 
e um muro de espelhos ergueu-se!

ao olhar o meu reflexo no muro
arranquei os olhos
para não voltar a ver-me

eu era o germe do silêncio
que chorava versos mudos
condenado a roer a memória mais funda
até que o verbo... já não doa.

Sónia M




07 janeiro, 2016

...



todos os lugares são caminho
e em todos os caminhos há encanto

encontra-o em todos os passos

em todas as coisas
e nada mais te desejo...

que a cada dia

em cada rua
um homem te cumprimente
e uma mulher te sorria

e só por isso te encantes!


se no virar da esquina 

houver um beco sem saída
chama pela criança 
quase perdida
quase encantada

- só ela sabe 

como fazer uma escada
e abrir uma porta 
com um pedaço de giz
esquecido num bolso 

assiste ao pôr do sol

{a todos que possas}
como um colecionador de ocasos

começa amanhã

que ainda há tempo!

guarda-os todos 

no mais fundo dos olhos

que importa o Inverno

que chova
ou que haja mais nuvens que céu?

as nuvens são ninhos para sonhos

é lá que todos se aconchegam
da criança ao homem
do homem ao voo

começa amanhã

que ainda há tempo!

agarra o primeiro 

por entre o espanto das mãos
e diz-lhe o meu nome

fala-lhe de mim

como o pássaro azul
que guarda o mistério do sonho
até ao último raio de luz

Sónia M


Imagem, © Dmitry Sulimov






01 janeiro, 2016

Recomeça...



Hoje bastava um pouco mais de céu.
Um pouco mais do sonho, que se lê no papel envelhecido.
Um pouco mais de Amor e sararia as feridas dos pássaros brancos, 
que de vermelho vão tingindo a terra.
Um pouco mais, do que o tilintar dos copos.
Ou do que o riso demorado, que o caçador de estrelas mortas, 
ouve sair das janelas, na rua quase deserta.
Hoje bastava um pouco mais de tudo, ou um pouco menos de tanto...

Recomeça, porque hoje tudo recomeça.
Leva a coragem, como companheira de viagem.

Sónia M

14 dezembro, 2015

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vê como passa o tempo
como a chuva teima em esconder a luz
que deixas quando passas

como são longe os caminhos
como as distâncias queimam todas as pontes
deixando as margens numa solidão aguada

e vê como tudo se altera
como tudo muda
ou como tudo regressa

quando uma pequena brecha na
memória se abre
e um pequeno vento se escapa e te sopra
uma suave melodia antiga

e como se não existisse outro tempo
a não ser o das madrugadas
onde os olhos se abraçam
e as margens cantam

inventas uma rua

regressas ao início
e fazes o que sempre fazias
- danças!

Sónia M

Imagem, Oleg Bazylewicz (1964-) - 1+1 (2011)