deixa que a luz te brilhe
brilha que a luz te olha
agarra-a de peito livre
livre a luz te colha
como quem arde e regressa,
para tornar a arder, assim galopa o mistério
- de veias abertas - no dorso do mundo
©Sónia Micaelo
deixa que a luz te brilhe
brilha que a luz te olha
agarra-a de peito livre
livre a luz te colha
como quem arde e regressa,
para tornar a arder, assim galopa o mistério
- de veias abertas - no dorso do mundo
©Sónia Micaelo
para falar-te é preciso
focar-me no nomes das coisas:
janela,
um dia porta, aberta ou fechada,
que chave?
e lembrar-me do nome da rua onde:
abraço, sorriso, língua, boca,
em que cidade?
para falar-te é preciso saber
que o som do trovão
não é maior que uma lágrima:
relâmpago.
e que saibas que nada é vazio ou sem nome
tempestade ou arco-íris
tudo toca o chão, ou o céu,
que pisamos.
©Sónia Micaelo
casa
dá-me a cor do vento
com paredes do sonho
e nas traseiras um jardim suspenso
com tulipas brancas a nascer
como quem cai do céu a sorrir
e um canteiro de estrelas
que suspire o dia inteiro
por um pouco mais de lua
deixa intocável
o som das sombras que me circundam
e comigo se sentam
a uma mesa feita de nós cegos
pedes-me uma única cor
e cheiras sempre tanto a sol
e eu
tremendo
por entre a penumbra
tentando decifrar a cor do vento...
©Sónia Micaelo
(Texto e imagem)
Ao domingo a palavra sobra-me.
Ao domingo a palavra falta-me.
O domingo foi sempre um barco parado,
sem rumo, bem no centro da minha existência.
Um vazio que nasce quando o dia acorda mudo,
sem que nada o preencha ou o afaste.
Ao domingo disfarço o silêncio
com um sorriso oco - que todos devemos sorrir
e ser felizes sempre;
e bonitos; e sábios; e capazes!
E todos são tudo isso e sempre mais.
Agora eu? Eu não gosto do domingo.
A não ser quando a voz da minha mãe
galga a distância, que vai do agora
à hora da missa, ralhando
que vou chegar atrasada. Ouço-a
como se me gritasse de uma das margens.
E eu num barco parado
bem no centro da minha existência.
Não ouço os sinos, nem a reza,
ou o amém, mas distingo o deslumbre
daquela primeiríssima palavra que ouvi ao padre
e corri ao dicionário para saber se existia,
passando a usá-la até à exaustão - blasfémia!
A palavra sobra-me ao domingo.
O domingo é a blasfémia
- não fosse a voz da minha mãe ... - ou
eu sou a blasfémia do domingo.
©Sónia Micaelo
por entre a busca e o desassombro
um silêncio entregue às brumas do corpo
e uma voz palpável na intimidade do vento
- como quem beija uma flor
pétala a pétala - ocupa o vazio
deploravelmente inteiro
Assim é a chegada a um novo lugar.
Um dia, deixei de - apenas - sentir
o que não tenho, chorando ausências,
e passei a ver beleza em toda a parte...
*
Zo is de aankomst op een nieuwe plaats.
Op een dag, stopte ik gewoon met voelen
wat ik niet heb - huilende afwezigheden -
en begon overal schoonheid te zien...
Sónia Micaelo
Antuérpia, 29/06/2022
(Texto e imagem)
Despe a memória,
lembra o som da chuva na janela do quarto.
O fado alegre no dia mais triste.
A carícia do beijo com sabor a sol.
Lembra como se olhasses um retrato,
que alguém tirou à janela de um sonho,
que não foste capaz de sonhar.
© Sónia Micaelo
(Texto e imagem)
soletra o meu nome devagar
olhos nos olhos - devagar
a forma como respiras
talvez cure o mundo, ou a mim
- baixinho - até que o nome se acabe
e a tua voz se extinga
sou-te
na brevidade do nunca
no único que seja - o agora - na
inocência da brisa do sempre
que acaba por chegar às portas do peito
e - antes mesmo de entrar - parte
amar-te
foi quase sempre
um breve calvário entre sílabas
©Sónia Micaelo