06 novembro, 2022

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deixa      que a luz te brilhe

brilha     que a luz te olha

agarra-a de peito livre

livre        a luz te colha


como quem arde e regressa, 

para tornar a arder, assim galopa o mistério

- de veias abertas - no dorso do mundo


©Sónia Micaelo


03 novembro, 2022

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para falar-te é preciso

focar-me no nomes das coisas:

janela,

um dia porta, aberta ou fechada,

que chave?


e lembrar-me do nome da rua onde:

abraço, sorriso, língua, boca,

em que cidade?


para falar-te é preciso saber 

que o som do trovão 

não é maior que uma lágrima:

relâmpago.


e que saibas que nada é vazio ou sem nome

tempestade ou arco-íris

tudo toca o chão, ou o céu,

que pisamos.


©Sónia Micaelo

16 julho, 2022

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casa



dá-me a cor do vento

com paredes do sonho

e nas traseiras um jardim suspenso

com tulipas brancas a nascer

como quem cai do céu a sorrir


e um canteiro de estrelas

que suspire o dia inteiro

por um pouco mais de lua


deixa intocável 

o som das sombras que me circundam

e comigo se sentam 

a uma mesa feita de nós cegos 


pedes-me  uma única cor 

e cheiras sempre tanto a sol


e eu 

tremendo

por entre a penumbra 

tentando decifrar a cor do vento...


 ©Sónia Micaelo 

(Texto e imagem)


10 julho, 2022

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Ao domingo a palavra sobra-me.

Ao domingo a palavra falta-me.

O domingo foi sempre um barco parado, 

sem rumo, bem no centro da minha existência. 

Um vazio que nasce quando o dia acorda mudo, 

sem que nada o preencha ou o afaste.


Ao domingo disfarço o silêncio 

com um sorriso oco - que todos devemos sorrir 

e ser felizes sempre; 

e bonitos; e sábios; e capazes! 

E todos são tudo isso e sempre mais. 

Agora eu? Eu não gosto do domingo. 

A não ser quando a voz da minha mãe 

galga a distância, que vai do agora 

à hora da missa, ralhando

que vou chegar atrasada. Ouço-a 

como se me gritasse de uma das margens.

E eu num barco parado 

bem no centro da minha existência.  


Não ouço os sinos, nem a reza, 

ou o amém, mas distingo o deslumbre 

daquela primeiríssima palavra que ouvi ao padre 

e corri ao dicionário para saber se existia, 

passando a usá-la até à exaustão - blasfémia!


A palavra sobra-me ao domingo.

O domingo é a blasfémia

 - não fosse a voz da minha mãe ... - ou 

eu sou a blasfémia do domingo. 


©Sónia Micaelo



03 julho, 2022

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por entre a busca e o desassombro 

um silêncio entregue às brumas do corpo 

e uma voz palpável na intimidade do vento

- como quem beija uma flor 

pétala a pétala - ocupa o vazio 

deploravelmente inteiro


©Sónia Micaelo

01 julho, 2022

"Primeiro estranha-se, depois entranha-se. "





Assim é a chegada a um novo lugar. 

Um dia, deixei de - apenas - sentir 

o que não tenho, chorando ausências, 

e passei a ver beleza em toda a parte...


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Zo is de aankomst op een nieuwe plaats. 

Op een dag, stopte ik gewoon met voelen 

wat ik niet heb - huilende afwezigheden - 

en begon overal schoonheid te zien...


Sónia Micaelo

Antuérpia,  29/06/2022

(Texto e imagem)

22 junho, 2022

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Despe a memória,  

lembra o som da chuva na janela do quarto.

O fado alegre no dia mais triste.

A carícia do beijo com sabor a sol.

Lembra como se olhasses um retrato,

que alguém tirou à janela de um sonho,

que não foste capaz de sonhar.


© Sónia Micaelo

(Texto e imagem)

18 junho, 2022

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soletra o meu nome devagar

olhos nos olhos - devagar


a forma como respiras 

talvez cure o mundo, ou a mim

- baixinho - até que o nome se acabe

e a tua voz se extinga


sou-te

na brevidade do nunca

no único que seja - o agora - na 

inocência da brisa do sempre 

que acaba por chegar às portas do peito 

e - antes mesmo de entrar - parte


amar-te 

foi quase sempre 

um breve calvário entre sílabas


©Sónia Micaelo