27 junho, 2014

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O primeiro dia na "casa nova", ficou marcado pelo inicio da espera, que todos os dias seguintes, iria fazer à noite.

Era um edifício antigo, com uma fachada surpreendente, que o fazia destacar de todos os outros, que preenchiam a rua. Umas imagens de pedra, com olhar triste, pareciam esgueirar-se pelas paredes, como guardiãs, da pouca grandeza que ainda lhe restava. No interior a degradação era bem visível. As escadas de madeira pareciam ser o banquete de milhares de térmitas. Subi-as, carregando os poucos pertences que me acompanhavam sempre - uma mala de roupa e uma caixa de papelão, onde transportava os únicos tesouros que possuía. Cada degrau que pisava, parecia gritar-me a idade que tinha. Alguns ameaçavam ceder ao peso da minha passagem. Chegei a imaginar um buraco negro a aparecer por baixo dos meus pés, fazendo-me cair num tempo, longe daquele tempo presente, com cheiro a velho, onde talvez a luz elétrica fosse ainda o sonho de algum louco. O Tempo. Subir aquelas escadas, fazia com que o Tempo perdesse o sentido. Era como se caminhasse na vida em círculos. Condenada a fazer o mesmo caminho, uma e outra vez, até reparar em todas as flores, árvores e bancos de jardim. Todas as casas, todas as nuvens, luas, sóis e estrelas, que se me escaparam na vez anterior. Enquanto isso, o caminho envelhecia triste, à espera da minha chegada. Mas, mesmo envelhecido, quando finalmente nele reparava, era novo.

Abri a porta e entrei em casa. Pousei a mala e a caixa de papelão, endireitei o corpo e olhei à minha volta. Uma chuva quase demente - ora finas gotas de espanto, ora grossas e fortes - açoitou o edifício. Numa parede, duas janelas sem cortinas, faziam lembrar dois olhos esbugalhados, que me olhavam perplexos. De repente os dois olhos começaram a chorar, para dentro e para fora. Tal como chora uma mãe, quando entra em casa, o filho há muito perdido.


Sónia M 



16 comentários:

  1. Uma história muito emocionante amiga Sónia.
    Irei visitar sua página no Facebook e gostaria que visitasse a minha também.
    "Prazer de Escrever."
    bjs e um ótimo final de semana.
    Carmen Lúcia.

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  2. Ruínas interiores in ruínas exteriores.

    Muito bom.

    Abraço

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  3. It's very beautiful.
    Have a nice weekend.

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  4. [falta saber o que me move,
    que me nutre.
    o jeito é ir tateando atrás de luz.]

    beijo

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  5. Bom dia Sónia,
    Muito, muito belo o seu texto pleno de emoções que penetram bem fundo na alma!
    "De repente os dois olhos começaram a chorar, para dentro e para fora. Tal como chora uma mãe, quando entra em casa, o filho há muito perdido. "
    O coração de mãe que jamais esquece os seus filhos ausentes!
    Um beijinho e bom fim de semana.
    Ailime

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  6. Que dizer do texto. Nada, a não ser que a Sónia escreve muito bem. Transparece muita segurança. Consegue-nos transportar também para dentro d"O primeiro dia na "casa nova". Nem todos o conseguem fazer.

    Beijinho e bom sábado :)

    PS: Não tenho Facebook, mas fui espreitar a sua página. Parece-me muito bem.

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  7. Tempo declinado em dois tempos - por entre os interstícios das ruínas...

    beijo

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  8. Assim se constrói o destino...o passado entremeando o presente, o inesperado nos olhando com olhos enviesados...
    Muito belo e bem construído texto!
    Um feliz domingo,

    Bíndi e Ghost

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  9. Sempre trazemos ao presente lembranças de nosso passado. Muito bem escrito amiga, beijos!!

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  10. Um escrever que nos toca completamente.
    Excelente!
    Beijinhos
    Maria

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  11. Emocionante, Sônia, sempre muito bom te ler.
    Maravilhoso!
    Beijos

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  12. Escreves com um rigor e uma sensibilidade desconcertantes, tanto em poesia como em prosa.
    Não é justo, tanto talento condensado numa pessoa só!...:-))
    Que prazer ler-te, Sónia.
    Já vi que é a tua vez de te ausentares, espero bem que para umas merecidas férias.
    Tudo de bom.
    xx

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  13. mais um belo texto que podia fazer parte da vida de qualquer um de nós, quase conseguimos ouvir o ranger dos degraus envelhecidos.Muitos parabéns

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