14 julho, 2021

Este é o meu chão

 




A escada de madeira, apesar de lhe ser entregue 
a mais leve e a mais pequena, tinha o peso da dor 
de mil inocências perdidas.Carregava-a, 
tentando equilibrá-la, até chegar à próxima oliveira, 
num chão que se agarrava às botas de borracha. 
Fazendo com que o próximo passo fosse ainda 
mais penoso que o anterior. Cada passo dado 
somava peso, que o seu corpo pequeno e franzino, 
suportava apenas através do pensamento:
- Eu consigo! 
Era como se a terra a quisesse tragar de vez 
e assim a libertar daquele martírio. Ainda assim, 
insistia em permanecer à superfície. 
- Este é o meu chão e a escada a minha cruz. 
Talvez todos sejamos um Cristo, 
a carregar misérias às costas, não pecados.
E em algum lugar do caminho, alguém nos espere 
para nos crucificar, como castigo, por sermos pobres. 

- Mãe, tenho frio, já não sinto as mãos. 
- Aguenta só mais um pouco. 
Estamos quase na hora de almoço. 

E o coração minguante da mãe, num pranto contido, 
carregava a dor de todas as mães, que não conseguem 
levar os filhos a pisar outro chão, 
a não ser o que elas próprias pisam.
 
Sónia Micaelo 
Excerto de:
"Memórias de outras vidas"
(a editar)


*

Fotografia,  ©Nuno Clavinas

4 comentários:

  1. Gostei muito da tua publicação. Obrigada pela patilha
    -
    Momentos de lúcida reflexão
    -
    Beijo, e um excelente dia

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  2. Poema lindíssima. Sublime peça literária. Gostei muito de ler
    .
    Cumprimentos
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  3. Grandioso poema, me agrado
    mucho visitarte.

    Besitos dulces

    Siby

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  4. A sensilidade deste poema fez-me sentir um arrepio.

    Um abraço, com carinho.

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