04 agosto, 2023

Cega de luz





cega de luz guarda por dentro

o fogo que abrasa os pés à saudade

só por hoje que amanhã ninguém sabe 

que o diga a rua que lhe esqueceu os 

passos as portas fechadas e as paredes 

sem cal - a ausência que se assoma nas

janelas despidas só para a ver passar;


tropeçar no vazio, esfolar os joelhos da fé 

no regresso, ficar perdida no meio da rua

com menos e menos ao que voltar 


mas só por hoje - que ela ainda sabe 

o caminho e amanhã é memória 

onde ninguém mais a sabe - cega de luz 

guarda por dentro o fogo que abrasa 

os pés à saudade


© Sónia Micaelo

(Texto e imagem)

Elvas, 04/08/2023


24 junho, 2023

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até ao dilúculo 

a incessante busca 

por algo que valha


letra a letra 

agarra-se ao último verso

 - como um náufrago 

em agonia - incapaz 

de salvar 

uma só gota de sangue...


© Sónia Micaelo 

26 março, 2023

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num minuto roubado à rotina

encontro a artéria que percorre o corpo


a língua na ponta dos dedos

antes do virar da página 

o mel e o fel, palavra a palavra

o lado direito de um coração 

a quebrar o silêncio da ave que passa


estendo as pernas, relaxo os músculos 

- e sem que o saibas - por uma vírgula, 

respiro...




©Sónia Micaelo 

(leituras)

Antuérpia, 26/03/23


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Fotografia ©Nuno Clavinas 


19 março, 2023

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é precisa uma faúlha de paz 

na língua do caos.

deslizar um dedo 

pela espinha do destino

sabendo-te dele

pele que sustém.


seguir por entre a poeira

ainda que tudo se confunda

e o lugar pareça uma musa em ruínas 

de mãos abertas a chamar por ti.


é preciso ser:

quando não tens nem és;

quando tens sem ser; 

quando és o que tens;

quando não tens o que és


até que o significado se perca 

e então, tenhas que decidir

- como quem finalmente se vê 

e se sabe - até quando?


©Sónia Micaelo


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Fotografia, ©Nuno Clavinas

06 fevereiro, 2023

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ser na sombra que branda

acompanha a luz que me cega

- sem que de mim saiba - a hora 

em que tudo subsiste e transborda


©Sónia Micaelo 

(Texto e imagem)



22 janeiro, 2023

Domingos




A estrada principal atravessa a freguesia,
qual tronco de árvore, com  poucos ramos a este e a oeste 
imitando as ruas de pararelo irregular.
E eu folha caduca , assombrada por dias uniformes. 
Com alguma sorte sobraria tarde  para a solidão,
antevendo sem nexo o lugar da queda. 

A seguir à missa, o almoço. E a hora das visitas; 
os avós, as tias, os padrinhos. 
 Por entre as conversas dos adultos,
" És a mais nova. 
Esperas pela tua vez para falar. 
E quando chegar a tua vez, calas-te!", 
 escapulir-me até à casa da "J". 
Falar ao desbarato, opiniar sobre tudo. 
Ouvir, mutuamente, descobertas de uma  curta existência.
Gravá-las como segredos numa cassete,
e enterrá-la como um tesouro,  
na sombra de uma oliveira.

E esperar...que um vento inverso venha punir a rotina, 
fumando o cigarro que roubámos ao pai
como quem fuma a seguir ao sexo,
ignorando que a vida nos atravessa ao contrário.
Primeiro o orgasmo. Depois a saudade. 



©Sónia Micaelo 
Memórias da primeira gaveta 
(Excerto)

Fotografia, ©Nuno Clavinas 


03 janeiro, 2023

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em cada passo

a memória engastada,

como deve ser.


esquecer é perder o verbo, o tino. 

um espinho que rasga o caminho

- sem raiz nem rosa - do porvir.


seja leve ou intenso, 

mas que seja:

- coração palpitando na estrada.


mais que simples comboio que passa,

com hora marcada.

mais que leve tremura nos alicerces da casa.


©Sónia Micaelo

17 dezembro, 2022

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Não sei palavras que sirvam 
para atenuar o peso dos lugares vazios à mesa - a doer nos ossos - de quem ao lado se senta a sentir a ausência.
Não existem palavras, ou fórmulas mágicas, que nos salvem das tragédias da vida. 
Eu não as tenho, nem nenhum de nós as tem. 
A vida está para o verbo perder, como o verbo perder está para vida. 
Dizer, o que quer que seja, parece inútil.

Porque nada que eu diga, mudará 
uma vírgula no que acontece no mundo. 
Não parará, certamente, a guerra.
Nem estancará a tua dor. 
Nada impede o frio da cidade.
Nem os cobertores distribuídos, perfumados de bem-querer, 
resistem às temperaturas da noite, por quem adormece no chão, 
na esperança de um amanhã. 

Observo e sinto todas as solidões, a que somos submetidos - a descrença, os julgamentos precoces, a violência gratuita, o xenofobismo - e descubro palavras que, independentemente da religião, ou da força que nos move, todos partilhamos. 
Porque todos as somos - espírito, luta, alma, esperança - todos!

É quase Natal. 
E a magia do Natal confunde-se com a azáfama das prendas. E com as pequenas hipocrisias que cometemos, numa tentativa de espiar pecados.
A consciência da época, que perdemos ao longo do ano. 
O ser por todos o que ninguém é por ti.
A utopia à venda. De barbas brancas, tentando sobreviver ao esquecimento,  
grita nas ruas iluminadas - OH OH OH! 

É quase Natal.  
E nada impede o frio da cidade. 
Mas um pequeno gesto, centelha a lembrar ternura, é o que impede o frio de entrar em mim. 


©Sónia Micaelo
(Texto e imagem)