22 janeiro, 2023

Domingos




A estrada principal atravessa a freguesia,
qual tronco de árvore, com  poucos ramos a este e a oeste 
imitando as ruas de pararelo irregular.
E eu folha caduca , assombrada por dias uniformes. 
Com alguma sorte sobraria tarde  para a solidão,
antevendo sem nexo o lugar da queda. 

A seguir à missa, o almoço. E a hora das visitas; 
os avós, as tias, os padrinhos. 
 Por entre as conversas dos adultos,
" És a mais nova. 
Esperas pela tua vez para falar. 
E quando chegar a tua vez, calas-te!", 
 escapulir-me até à casa da "J". 
Falar ao desbarato, opiniar sobre tudo. 
Ouvir, mutuamente, descobertas de uma  curta existência.
Gravá-las como segredos numa cassete,
e enterrá-la como um tesouro,  
na sombra de uma oliveira.

E esperar...que um vento inverso venha punir a rotina, 
fumando o cigarro que roubámos ao pai
como quem fuma a seguir ao sexo,
ignorando que a vida nos atravessa ao contrário.
Primeiro o orgasmo. Depois a saudade. 



©Sónia Micaelo 
Memórias da primeira gaveta 
(Excerto)

Fotografia, ©Nuno Clavinas 


2 comentários:

  1. Poema fascinante de ler. Grato pela partilha.
    .
    Saudações poéticas e cordiais
    .
    Poema: “”Luz poética que renasce””…
    .

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  2. Como é bom ouvir este sotaque (imerso na poesia) para falar dos domingos.
    Também bebo da sua palavra a chama.
    Um abraço, Sónia!

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