10 julho, 2020

Paradoxos







Em algum lugar, folhas caídas, tentam ainda trepar as árvores. 

Não sei se é a folha que procura a árvore, 
ou a árvore que procura ainda a folha... 
Há buscas que nunca encontram caminhos...
Caminhos que ninguém procura.  Sonhos que ninguém persegue...
Estações com comboios que vão e vêm de lugar nenhum. 
Partidas sem regresso e regressos a apeadeiros vazios. 
Braços que ninguém espera e abraços que ninguém esperava... 
Dias que não chegam e amores que nunca o serão.

Janelas voltam a fechar-se e abrem-se portas. 
Praças enchem-se de gente e mais gente.  Tanta gente, 
de novo tão invisível no outro. Da janela, todos os dias, 
avistava uma mulher, com um chapéu na cabeça de uma cor indecifrável. 
Reconhecia-lhe o andar cambaleante, de quem vai bêbada de saudade 
e amarguras.  Sem a janela...sem a janela já não a encontro!
Não sei se morreu ou voltou à transparência da rua. 

Mas nada disto importa!

Mais ao longe, o verde de uma oliveira 
resiste estoicamente à paisagem alaranjada. 
Mesmo que eu não queira, o sol já inundou os campos e as esplanadas, 
onde umas mãos te rodeiam agora o pescoço... 
e um homem de sorriso amarelo, tenta vender, por entre as mesas, 
a solidão da rosa em pranto, pela falta de raiz. 
A um canto da esplanada ali está ela!  Uma mesa vazia.
Que talvez, por distração ou respeito,  ninguém quis ocupar. 
Talvez me espere ... e ali te escreva mais um verso que ninguém lê. 

Mas eu sei, eu sei...que nada disto importa!

Muito ao longe, no firmamento, céu e mar fazem-se uno, 
sem deixar o mínimo rastro deste lugar, onde comungam o amor e o ódio; 
o céu e o inferno; a mulher do chapéu de cor indecifrável e um dia que não chega;
um comboio sem paragem e tu e eu.

Tudo isto sem rastro.
Tudo isto sem nós... 


©Sónia Micaelo 
(Texto e imagem)

No vídeo
com voz ⤵️


17 comentários:

  1. Lindo texto Sónia. Como é teu apanágio... E deliciar quem lê.
    Um pouco triste. Creio que é triste porque, estranhamente, quando se diz que "nada disto importa" a verdade vai um pouco mais além... Uma coisa que não importa, não merece tantas palavras, não importa.

    Gostei muito. As metáforas são tuas amigas. Vivem em ti.

    E vê, até o "céu e o mar fazem-se uno", sem deixar rasto.

    Beijinho e bom fds.

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  2. Boa noite, Sónia M.
    Aos meus olhos traças o poema numa metáfora ao tempo e às circunstâncias em que todos estamos mergulhados. O eu e outro, o eu e o tu, a rua e o vácuo da transparência, a geografia da presença e da ausência, o somatório que se espelha em subtrações, enfim, um mundo de paradoxos.
    Gostei e agradeço a visita à minha janela.
    Beijo.

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  3. grata (re)descoberta a tua poesia!

    a vida passa indiferente, lá fora, sem um aceno, eu sei!...
    apesar de tudo, gostei de ver uma insignificante folha
    a erguer-se, do chão, frondosa árvore...

    abraço

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  4. Olá, Sónia!

    Um excelente poema, onde vemos a vida, tal como ela é e acontece.
    Senta-te na mesa vazia, que há muito te espera, pega numa rosa, esquecida, talvez, e encontra-te na escrita. Aí, tu e ele darão as mãos, assim, inconsequentemente.

    Beijos e bom resto de domingo.

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  5. Lindíssima prosa poética,gostei imenso,tudo perfeito por aqui!! Desejo-te um excelente mês de Julho,muita alegria,muita paz,muita saúde para ti,fica bem,muitos beijinhos!!

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  6. O de volta é o único caminho para o que buscamos.
    GK

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  7. Há impérios que morreram por cansaço
    outros por desamor
    e ainda há aqueles
    que morreram sem saberem
    que tudo o que nasce,
    um dia, a tantos de tal, irá morrer…

    **********************************
    Destaco o comentário do Agostinho, que foi quem melhor interpretou o poema da Sónia Micaelo.

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  8. Sónia,
    Todos somos folhas de uma árvore e nem sempre o pressentimos. A árvore da vida!
    Porém há dias em que nos movimentamos como espectros tocados pela brisa...

    Beijos!

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  9. Há buscas que nunca encontram caminhos...
    Esta frase resume de modo sublime
    muito do que penso...

    Abraço, Sônia...

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  10. Se calhar todos somos folhas que procuramos a nossa árvore. Por vezes os caminhos são ingratos e difíceis mas não será nessa ingratidão e dificuldade que está a beleza do caminhar?
    Gostei muito do seu poema. Sem rimas, é muito difícil de escrever. Elogio a inspiração e criatividade poética
    Voltarei

    Cumprimentos poéticos.

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  11. A vida é uma roleta, mas ainda bem que só uma vez é que é russa...
    Até lá, deixemos os nossos rastros, que valham a pena serem admirados por quem gosta de nós realmente.
    Excelente, gostei muito.
    Bom fim de semana, querida amiga Sónia.
    Abraço.

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  12. Leio, interiorizo, fico quedo, como uma qualquer personagem do poema...
    Mas reajo, quero vida. E oxalá uma réstia desta vontade se propague até à janela de quem observa.

    Um beijinho, Sónia :)

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  13. Maravilhoso texto e um severo convite a reflexão.

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  14. Boa tarde Sónia,
    Um poema muito belo.
    A vida com suas vicissitudes, onde somos tudo e nada, em que o vazio e as dúvidas se instalam e nos questionamos sobre tudo.
    Precisamos manter viva a esperança.
    Um grande beijinho.
    Ailime

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  15. Boa tarde tudo bem? Sou brasileiro, carioca e procuro novos seguidores para o meu blog. E seguirei o seu com prazer. Novos amigos também são bem vindos, não importa a distância.

    https://viagenspelobrasilerio.blogspot.com/?m=1

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  16. Boa tarde Sônia. Obrigado por me seguir. Estou lhe seguindo também. Bom final de semana.

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  17. Inexplicáveis ou, até, necessários desencontros, cobrindo lugares, pessoas, expectativas. Belíssimos versos. Bjs.

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