Abri a porta e entrei em casa.
Pousei a mala e a caixa de papelão, endireitei o corpo e olhei à minha volta. Uma chuva quase demente - ora finas gotas de espanto, ora grossas e fortes - açoitou o edifício. Numa parede, duas janelas sem cortinas, faziam lembrar dois olhos esbugalhados, que me olhavam perplexos. De repente os dois olhos começaram a chorar, para dentro e para fora. Tal como chora uma mãe, quando entra em casa, o filho há muito perdido.
Ouvi bater à porta. Quando a abri, dei de caras com um sorriso, daqueles que nos fazem sorrir também. Era um homem, mas o primeiro que lhe notei, não foi o sorriso de menino, nem o cabelo grisalho. O primeiro que lhe notei e senti, foi a ternura. Caramba! O que via não era um homem com ternura. Via a ternura com um homem lá dentro. Só via o homem, porque a ternura é transparente.
- Boa tarde! Sou o zelador das almas que habitam este edifício, vim informá-la que a partir deste momento, estarei ao seu dispor, para zelar também pela sua.
- Boa tarde! Como alma perdida que sou, não sei dizer-lhe o quanto me apraz ouvir isso.
Há muitos anos que o espero.
As gargalhadas que se seguiram, não escaparam ao eco no corredor, que as repetiu até onde o ouvido já não chegava. Convidei-o a entrar, com o mesmo entusiasmo com que se pede a um velho amigo que entre, depois de uma longa ausência. A verdade é que nem o seu nome sabia, mas que importa um nome, quando a alma parece reconhecer um amigo de longa data.
Chamava-se Alexandre, era o zelador do prédio. Mas pela forma como falava e me acolhia, bem que podia ser um zelador de almas.
- Amanhã virei arranjar a choradeira da janela. Agora posso ajudá-la a trazer a bagagem para cima.
- Agradeço a amabilidade, mas já subi toda a bagagem.
- Uma caixa e uma mala!
- Achei que não precisava de mais nada.
- Entendo...Talvez me queira acompanhar, gostaria de lhe mostrar um lugar. Não demora muito, depois deixo-a, para que se instale.
Concordei, sem perguntar onde ia. Saímos de casa, atravessámos o corredor e subimos dois andares de escadas, em silêncio. Fomos dar ao telhado, onde um jardim o cobria como se de um manto se tratasse. Era lindo, como uma pintura! Ao fundo avistava-se o porto de Antuérpia, olhando para o meu lado direito, podia ver a torre da famosa Catedral e nas traseiras do jardim, um emaranhado de prédios com pequenas chaminés largando fumo, escondia as ruas cinzentas. Ali em cima, senti que pisava o último lugar verde do mundo, onde a calma, a serenidade, e até o canto dos pássaros se conseguia respirar. Olhei para o Alexandre.
- Porque me trouxe aqui?
- Achei que precisava. Já não chove, em breve o sol vai-se pôr, gostava que assistisse comigo ao pôr do sol.
- Não me parece que hoje se veja grande coisa, Alexandre. O céu está de um cinza tão escuro. Penso que passará do cinza ao negro da noite, sem que mais nada se consiga ver.
- Ver não é assim tão importante. Quando tudo o que se vê é cinza, é preciso aprender a ouvir a luz. Por vezes, quando se deita, só lhe ouvimos o cansaço, mas, quando acorda, mesmo por detrás de uma cortina cinzenta, continua a dar vida às cores...
Sónia M
Olá Sónia, só sei que cada vez mais admiro o seu estilo de escrita! E depois as lágrimas caem-me, sim, estou a chorar, (sinto-a como se de uma filha se tratasse), porque conheço bem o drama dos jovens que tiveram que abandonar o País para seguir os seus sonhos, longe do aconchego dos seus! Sim, um dos meus filhos também partiu de novo para Toronto, (depois de umas pequenas férias aqui) onde labuta e muito por causas que vão escasseando por aqui!
ResponderEliminarSó desejo que o céu de Antuérpia sorria para si e que o cinza fique azul bem depressa e que a Luz a ilumine sempre.
Um beijinho e abraço.
Ailime
Conheço bem o drama dos que partem, Ailime, mas também o de quem vê partir.
EliminarAinda há duas semanas atrás o vi nos olhos dos meus pais...acabo por olhar para si, como olho para eles. Que a luz da coragem sempre a acompanhe, querida Ailime.
Um forte abraço.
Por mais escura que a noite seja, o Sol nasce pela manhã! E mesmo a chuva... já te disse! - Forma com a Luz o Arco De Ìris... - O Arco da União entre o Céu e a Terra! - Que um Dia Deus ofereceu às crianças, quando lhes sussurrou coisas que nunca disse aos sábios!
ResponderEliminarBEIJO!
Extraordinariamente bem escrito!
ResponderEliminarNão sei se a história é verídica, ou semi-verídica e a embelezaste, mas se alguma vez foste recebida assim por um Alexandre, zelador de um prédio e das pessoas que lá habitam ou habitarão, então a poesia aconteceu, e de certeza que assististe mesmo ao põe do sol.
Lindo!
xx
Obrigada pelo teu comentário, Laura.
EliminarNa verdade, este texto é um excerto de um conto que escrevi e que, sempre que a coragem bater à porta, irei partilhando por aqui. Uma mistura de realidade com ficção. Existe realmente um Alexandre, não um zelador de um prédio, mas o homem que me incentivou a escrever toda a história.
Uma boa noite. Beijinhos.
Ah ! Obrigada, tenho sempre curiosidade de saber se uma história é realidade ou ficção, embora em termos de qualidade e interesse literário a questão nunca se ponha.
Eliminarxx
Um dia seremos de novo crianças
ResponderEliminara chover nos olhos
Um dia...
EliminarOlá, Boa noite,Sônia...
ResponderEliminarmuito bem escrito, como sempre...
...buscar a luz em meio às tribulações é uma atitude de rendição e sabedoria para sair da situação de escuridão. Por pior que seja a situação e o problema que venhamos a enfrentar, ele não pode nos fazer desesperar a ponto de esquecermos que a alma precisa de felicidade, e se já escreveram que "os olhos são a janela da alma", então, se tudo o que nós vemos vai para a nossa alma, é preciso lhe dar perspectivas de que haverá um novo amanhecer ...
Obrigado,
Pelo carinho, belos dias,beijos!
poema, contenido; todo una gran obra!!!!!
ResponderEliminarun abrazo
Sónia, não entendi o seu comentário
ResponderEliminarDepois volto para comentar o seu, estou com muitas dores.
Lua Singular
Sonia querida,
ResponderEliminarFiquei completamente envolvida pela leitura.
O final traz uma mensagem importante. Que aprendamos a ouvir a luz!
Belíssima escrita.
Beijo.