Vejo a memória como um corredor, com paredes cheias de janelas assimétricas. Muito comprido, a terminar no lugar onde agora me encontro. À minha frente há um muro que pulsa, como se tivesse dentro um coração, e, se a ele lhe encosto o peito, desfaz-se numa nuvem branca, voltando a formar-se um pouco mais à frente. E assim avanço, sem nunca saber o que haverá para além deste muro que pulsa, que o único que me pede, é que a cada dia que passa, junte o pulsar do meu peito ao dele, em troca de mais uns passos.
Há momentos em que gosto de virar as costas ao muro. Entretenho os dedos a contar as janelas, e os olhos, com o tamanho do corredor, que de cada vez me parece mais comprido. Às vezes há uma janela que se abre por este ou aquele motivo. Pode ser um cheiro, uma palavra, um bater de asas de um pássaro, um riso de uma criança ou um céu mais estrelado. Não é preciso muito, para que uma dessas janelas se abra e me deixe olhar para mim , num tempo que já não existe. De todas as viagens que já fiz, é esta, a que faço por este corredor, espreitando pelas janelas, guardiãs de todas as viagens, a que considero verdadeiramente mágica. Nesta viagem, encontro tudo o que aprendi e o que não consegui aprender. Provavelmente, este momento, ficará também fechado dentro de uma janela, como a memória que viajou até se encontrar na primeira...
Esta é a minha primeira janela. Antes dela, não há mais nada.
Cheirava a bolo de chocolate e a café. Levantei-me da cama e corri para a cozinha. Abracei-me à minha mãe, que preparava o pequeno almoço.
- Onde está a mana?
- A mana está na casa de banho. Não te esqueceste que dia é hoje pois não?
- Não esqueci, não! E o pai?
- O pai está no quintal a tratar dos animais.
Mal ouvi que o meu pai estava no quintal, corri para fora da cozinha, atravessei a sala de jantar e ao chegar ao corredor que dava acesso ao quintal, ouvi o grito da minha mãe.
- Não vás para o quintal descalça!
Mas eu fingi que não a ouvia. O quintal era para mim o paraíso e no paraíso não se precisa usar sapatos. Abri a porta do quintal e saltei por cima dos três degraus da entrada, acabando por cair. Não chorei, que aquele não era dia de chorar. Fiquei no chão a olhar para a árvore no centro do quintal. Era enorme. E eu sabia que ela tocava o céu, como o pé de feijão da história que a minha mãe me contou. Só que lá em cima não havia gigantes maus. A minha árvore, era o caminho para um lugar onde todos eram bons e tinham asas, como os pássaros, que faziam ninho nos seus braços, que davam sombra a quase todo o quintal.
Ao avistar o meu pai levantei-me e corri para ele. Ainda não o tinha alcançado quando ouvi a D. Joana, a vizinha da frente, entrar em minha casa aos gritos. O meu pai largou tudo. Passou por mim a correr, sem me ver, e entrou em casa. Eu segui-o, sem perceber o motivo de tanta aflição. Continuei a segui-los a todos, quando saíram a correr para o pátio da frente. E continuei a segui-los, quando atravessaram a estrada e entraram em casa da D. Joana, que parecia histérica. Entrei a tempo de ouvir o meu pai gritar.
- Não o faças!
E de o ver arrombar a porta do quintal. Quando a porta se abriu, vi o Sr. Zé, o marido da D. Joana, pendurado no alpendre, por uma corda no pescoço. Estava nu, com uma toalha enrolada à cintura e as pernas estrebuchavam violentamente. O meu pai agarrou-lhe de imediato as pernas e tentou tirá-lo da corda. O Sr. Zé era um homem muito gordo, não sei onde foi o meu pai buscar tanta força nos braços, para o conseguir elevar e tirar-lhe a corda. Deitou-o no chão e tentou reanimá-lo, mas em vão. Entretanto todos os vizinhos da rua, já haviam entrado na casa. Uns diziam que se havia matado, outros que o pescoço se partiu, outro que já tinha chamado a ambulância e no meio daquilo tudo ninguém notava a minha presença. Eu era tão pequena. Pequena demais para entender o que se passava. O único que sabia era que o meu pai estava a fazer uma coisa importante e que todos aguardavam, que aquilo que o meu pai fazia ao Sr. Zé, o fizesse mexer novamente, mas o Sr. Zé não se mexia. Entretanto alguém me agarrou pelo braço, a mim e à minha irmã, e nos levou para nossa casa. Eu nem havia notado a presença da minha irmã, ainda não a tinha visto e aquele dia era dela. Ouvi-a dizer baixinho,
- Ninguém se lembra que eu faço anos...
- Eu lembro...Parabéns!-
- Mas agora já não é a mesma coisa...
O facto de ser o aniversário da minha irmã, faz-me situar no tempo com precisão. A minha irmã fazia 9 anos e daí a 3 meses eu faria 4.
Foi a minha madrinha que nos levou para casa. Eu sabia que o Sr. Zé estava morto e que nunca mais o íamos ver. Era isso que queria dizer “estar morto”. Deixávamos de ver as pessoas, só não sabia para onde é que elas iam, mas deixávamos de as ver. E o Sr. Zé não queria que ninguém mais o visse. Fiz mil perguntas à minha madrinha sobre o que se passou, mas nenhuma resposta me pareceu convincente, então fui para o quintal, para junto da minha árvore mágica.
Em redor do tronco, algumas raízes furavam a terra. Uma delas, um pouco mais saliente, tinha uma curvatura, que parecia feita à medida do meu corpo e eu sentava-me muitas vezes ali, como se estivesse ao seu colo. Gostava de olhar os ninhos dos pássaros e aqueles braços enormes, que se agitavam ao sabor do vento, como se lutassem contra dragões, protegendo-me. A árvore estava agitada, lutava violentamente contra o vento. De repente parou, como se tivesse perdido a batalha. Ao mesmo tempo, algo caía em direcção da minha cabeça e eu saltei-lhe rapidamente do colo. Caiu estatelado na terra. Era um pássaro. Cheguei perto, toquei-lhe com um dedo, mas tal como o Sr. Zé, ele não se mexia. Durante algum tempo fiquei ali, a olhar para ele, até que os braços da árvore se voltaram a movimentar, desta vez, suavemente. E foi assim, com um bailado de folhas e braços, que a minha árvore mágica me contou um segredo, que tinha guardado no tronco. Um segredo, que só uma menina de quase 4 anos conseguia ouvir.
“Para cada homem há uma ave, que nas asas lhe guarda a bondade, a coragem e a pureza. Sempre que um homem desiste e não se deixa mais ver, há uma ave que se suicida.”
Venha quem desdiga a menina, quem desminta os segredos que por si descobre. Ou quem lhe diga que são mentiras, as verdades que só ela conhece.
Foi aí que chorei. E se o mundo ficar sem pássaros?
Sónia M
Texto integrado na Antologia "Aquela Viagem", Papel D'Arroz Editora
Texto integrado na Antologia "Aquela Viagem", Papel D'Arroz Editora
Oi Sónia,
ResponderEliminarQue conto lindo menina! Você pode escrever um livro de contos que terá o maior sucesso.
Nem sei o que dizer, pois um conto não se diz, se sente.
Você é demais...
Obrigada pelo carinho
Beijos
Lua Singular
Sensacional, Sónia.
ResponderEliminarAmei. Parabéns!
Boa tarde Sonia.. uma descrição perfeita de como uma criança que tem na sua volta um mundo de magia se cala diante de algo desta vibração que se reduz assim como o suicidio que alcança montantes alarmantes nos dias de hj.. eu mesmo numa das minhas regressões me vi num passado distante cometer tal ato.. a vida hj dada a cada um de nós é a oportunidade de reparar tantas coisas.. tenha um lindo dia bjs
ResponderEliminarLapidando Versos
Adorei o teu conto.
ResponderEliminarPela forma e pelo conteúdo.
Porque a tua narrativa é apelativa (lê-se sem esforço e de um fôlego) e a história está muito bem estruturada, tendo um final brilhante.
Os meus parabéns por teres conseguido colocar o teu talento neste teu conto.
Tem uma boa semana, querida amiga Sónia.
Beijo.
Sónia, adorei a história. Lia-a de um trago só e quase sem me mexer. Sem respirar. O final está qualquer coisa de muito bom.
ResponderEliminar"E se o mundo ficar sem pássaros?"
Um grande beijinho :)
Um conto extraordinário, com os tempos de narrativa todos certos! Muito comovedor e surpreendente.
ResponderEliminarTodos nós adultos temos dentro de nós essas janelas que se abrem para recordações positivas e negativas, de uma forma ou de outra sempre marcantes. Janelas abertas para tudo o que nos fez crescer.
Adorei, Sónia. Muito bonito!
xx
UN RELATO MUY BIEN GESTADO. TE QUEDÓ EXCELENTE.
ResponderEliminarUN ABRAZO
Viva!
ResponderEliminarHoje tive um tempinho extra, para poder ler e comentar como deve de ser.
Normalmente uso o G+1 para marcar presença, mas nem sempre me satisfaz e aqui parece nem ter a opção
É um privilégio ler escritos bons como este conto fantástico, e eu vou tentar ser mais presente.
Abraços e beijos. D
http://acontarvindodoceu.blogspot.pt
Olá Sônia,
ResponderEliminarTristes lembranças, que me envolveram na leitura com emoção. Um acontecimento como esse é traumatizante e marcante na vida de uma criança com menos de quatro anos. Essa janelinha da memória bem que poderia ficar travada para sempre. Penso na decepção da irmã, que teve seu dia especial comprometido por um acontecimento tão dramático.
Apesar do foco tristonho, sua crônica foi lindamente traçada, principalmente nos parágrafos finais.
Essa triste história também me fez abrir uma das janelas da minha memória, que tento apagar. Certa madrugada, o telefone tocou por aqui trazendo uma notícia também traumatizante. O morador da cobertura havia pulado lá de cima. Corri para a janela, a contragosto do meu marido, para ver o que estava acontecendo. Seminu, no meio da rua, estava o corpo agonizante do jovem morador (casado e com dois filhos) com duas lâminas da cerca de ferro atravessadas em seu corpo. Ao pular, seu corpo bateu primeiro na cerca e em seguida foi lançado no meio da rua. Uma cena de horror. (Menos um pássaro ...).
Beijão.
un mundo de secretos y sin pájaros, es un mundo cruel
ResponderEliminarme gustó mucho el relato
saludos
Belo conto...Espectacular....
ResponderEliminarCumprimentos
Esas Ventanas que mueven bisagras de Recuerdos y Nostalgias.
ResponderEliminarEsas aves que se suicidan cada vez que un Ser humano lo hace también.
Magnífico Relato, bien coordinado en todos sus Tiempos y de una entretenida Lectura donde se masca la Tensión.
Abraços e Beijos.
Olá, Sonia.
ResponderEliminarAmei ler o seu conto. Sucinto e contundente.
Parabéns.
belíssimo teu texto... adorei ler. tens muito talento...
ResponderEliminarbeijo
Se o texto se confinasse à metáfora do corredor da memória, ladeado por “paredes cheias de janelas assimétricas”, já teríamos, só por si, uma narrativa consistente, original e de uma grande potencialidade literária. Mas a grande metáfora surge intencionalmente como uma introdução a uma história que a Sónia pretendeu contar, a do seu primeiro confronto com o suicídio (sendo ela ainda criança), e que ela, na ingenuidade própria da idade, ultrapassou, refugiando-se na magia do seu diálogo secreto com a árvore, de onde lhe vêm todos os sonhos e a explicação simples de um mundo complexo, que ainda não podia compreender. E esse mundo de fantasia só é interrompido no momento do lamento da sua irmã, que descobre que ninguém iria recordar-se do seu aniversário.
ResponderEliminarTrata-se de um belíssimo texto, bem escrito e iluminado por uma grande metáfora e que se enquadra no que se denomina “realismo poético”.
não se é ficção, se memórias, mas, está bem escrita.
ResponderEliminaracho que não sei sequer, porque estou tão comovida.
:(
Feelings ,behind a closed window, with open door!
ResponderEliminarxx
Por vezes somos pássaros
ResponderEliminarBjs
Boa dia,
ResponderEliminarO que conta pode ser real, muitas historia parecidas acontecem pelo mundo fora, admiro a sua criatividade transportada para o bem escrito,
Dia feliz
ag
http://momentosagomes-ag.blogspot.pt/
Oi Sónia,
ResponderEliminarPassando para lhe desejar um lindo dia.
Obrigada pelo carinho
Beijos
Lua Singular
Que história linda e emocionante amiga Sónia.
ResponderEliminarEu não viveria em um mundo sem pássaros,acho que seria muito triste.
bjs amiga e um ótimo final de semana.
Carmen Lúcia.
Uau...belezura de história.
ResponderEliminaradorei e muito.
beijo
"Foi aí que chorei. E se o mundo ficar sem pássaros?"
ResponderEliminarsoltem-se as asas que o orvalho das pálpebras é, ele mesmo, a rota e o voo.
belíssimo, querida sónia; um beijinho e um bom fim de semana!
Olá Sónia, um conto muito bem escrito e pela intensidade que não deslustra a sua enorme capacidade de escritora (antes pelo contrário a eleva pela sua gigantesca sensibilidade) me parece ser baseado numa história verídica! Parabéns, amiga, pelo seu potencial cada vez mais em crescendo tanto a nível de prosa como de poesia!
ResponderEliminarUm beijinho e bom fim de semana. Ailime
(Muito obrigada pelo carinho, sempre, lá nas minhas humildes palavritas)
Se a sua segunda-feira foi maçante, a terça cansativa, a quarta superfrenética, a quinta cheia de espinhos e sua sexta está fritando sua paciência... Então eu desejo que você tenha um Sábado fantástico e um Domingo cheio de coisinhas gostosas!
ResponderEliminarBom fim de semana!
Beijos
Ani
Olá,Boa noite,Sônia
ResponderEliminarsim,eu entendo que a memória é extremamente importante porque ela forma a base para a aprendizagem e a retenção dos conhecimentos aprendidos...por vezes, temos, sim,algumas ideias associativas para lembrar alguns detalhes (aniversário da irmã e seu Zé).
...somos uma espécie não muito harmônica, com tantos ou mais exemplos de egoísmo quanto de altruísmo, uma pena que nem todos homens, apesar de terem uma ave, que nas asas lhe guarda a bondade, a coragem e a pureza, tem a triste sina e no qual mais se parecem com bandos de aves... de rapina em sobrevoo da presa...
Ficou muito lindo,parabéns!
Obrigado pelo carinho, belo final de semana, beijos!
História fantástica, Sonia.Guarda verdadeiros tesouros atrás dessas portas assimétricas!!!
ResponderEliminarBeijinho.
A infância é cheia de portas que se fecham...até mesmo, porque se assim não fosse, não suportaríamos olhar para as paisagens descortinadas atrás delas. E as mentiras piedosas, contadas às crianças, não conseguem encobrir o que a sábia intuição infantil já descobriu.
ResponderEliminarVocê escreve com emoção e maestria, é sempre um prazer lê-la! Um grande abraço!
Bíndi e Ghost