24 novembro, 2013

A Senhora dos Pássaros

                                                                   Pintura, R Bassani


Ao menino traquinas.
E à Senhora dos Pássaros, que amanhã cumpre 66 anos.


A senhora dos pássaros saía de casa, trazendo as gaiolas uma a uma. Limpava-as, enchia os comedouros com umas sementes, água fresca e pendurava-as no alpendre. Têm que ficar à sombra, dizia, o sol pode matá-los. Eu sentava-me, gostava quando ela lhes falava e eles pareciam responder, num idioma, que só ela entendia, ao qual acabei por chamar de "passarês". Decididamente a senhora dos pássaros entendia "passarês" e os pássaros entendiam  português. Eram tão bonitos! Cheguei a querer brincar com eles, mas estava proibida de lhes tocar. Isso causava-me alguma angustia, talvez até um pouco de desespero, tal era a vontade que tinha de lhes deitar a mão. Não percebia o porquê daquela proibição, que mal faria?

Um dia a rotina foi ligeiramente alterada por umas pequenas caixas de madeira quadradas. Feita a limpeza das gaiolas, a senhora dos pássaros, enganchou em cada gaiola uma caixa, pelo lado de dentro.  Na verdade, pareciam pequenas casinhas, mas, em vez de porta, tinham um  buraco redondo, que eu não percebia para que servia. Fiquei de tal maneira intrigada, que nos dias seguintes, imaginei mil e uma utilidades para as casinhas do buraco redondo. Talvez seja o hospital, pensava, é ali que vão curar as asas, ou talvez uma despensa, deve estar cheia daquelas sementes. Ou então é um quarto para dormir, como só lá cabe um, talvez durmam à vez! Os dias passavam, mas a minha curiosidade não passava com os dias.

Foi numa manhã solarenga, com um céu tão azul como os olhos da tia Elvira, que a minha curiosidade foi finalmente saciada. Sempre que via um céu assim, vinha-me à memória a tia Elvira. Que me perdoassem todas as outras tias, mas aquela era a mais bonita. Trazia o céu nos olhos e o sol nos cabelos. Chegou a ser contratada como modelo fotográfico, pelas fábricas de malhas da zona, onde a maior parte das mulheres que eu conhecia trabalhavam, incluindo a minha mãe. Ouvia frequentemente os mais velhos dizerem, "aí vem a 'Vira pequenina, é tal e qual a tia, tem até o seu sorriso". Considerava tais comentários como uma blasfémia, palavra que ouvira ao padre na missa de domingo e que desde então usava com alguma frequência, ainda que muitas vezes fora de contexto. Fora de contexto estavam tais comparações, uma era loira e alta -parecia-se às mulheres que o meu irmão mais velho pendurava nas paredes do seu quarto, mas mais vestida -  e a outra era morena, minorca e franzina. Uma tinha olhos azuis, outra verdes.
Enquanto uma exibia um sorriso luminoso com todos os dentes, a outra, eu, esperava dentro do que me parecia uma eternidade, que me crescessem os dentes da frente. Divagava eu naquela manhã, entre o céu e os olhos da minha tia, quando a senhora dos pássaros me chamou 
- Anda cá, tenho uma coisa para te mostrar.

Ela estava junto a uma gaiola. Quando cheguei perto, puxou a parte de trás da caixa de madeira, que pelos vistos era amovível e pediu-me para espreitar. Se eu soubesse disto antes, pensei, quantas vezes não teria eu puxado a parte de trás da bendita caixa?! Assim que espreitei, pensei logo em enfiar a mão lá dentro e se bem o pensei, melhor o fiz. Quando saquei a mão, já trazia nela, um dos três misteriosos inquilinos da casinha. Eram moles, com uma pele lisa que me arrepiou.  

- O que é isto? 
- Isto é um pássaro bebé. Agora volta a pô-lo lá dentro antes que a mãe dele se zangue contigo.

Um bebé! Afinal o mistério das caixas de madeira estava resolvido, eram maternidades! Se bem que "aquilo" em nada se assemelhava a pássaros, nem penas tinham. Eram assim como eu e a minha tia Elvira: semelhanças? nenhumas! 
Tranquilizou-me a senhora, dizendo que as penas iriam crescer e que ficariam tão bonitos como todos os outros. E depois? O que aconteceria aos novos pássaros depois de crescerem? Depois de perguntar, fiquei a saber, que seriam entregues a novos donos. A D. Joana, a vizinha da frente, já tinha uma gaiola à espera de um...

Naquela noite tive dificuldade em dormir. Não podia deixar de pensar que era assim que tudo começava. Cresciam-lhe as penas, ganhavam asas e depois viviam toda a sua vida dentro de uma gaiola. Não fazia nenhum sentido. Para que teriam asas, se jamais iriam voar? Acordei de mau humor, sem apetite, cabisbaixa, não mostrei o meu sorriso desdentado nem uma única vez. Foi de tal maneira notória a minha inércia, que passei o dia a ouvir, 
- Dói-te alguma coisa? - De certa forma até doía.
- O que tens? Vá, onde está esse sorriso lindo? - Eu podia lá sorrir. 
- Deixa ver se tens febre, acho que a cachopa está doente! - Não tinha febre, estava triste. 
De repente lembrei-me de uma frase que alguém um dia me sussurrou,"és responsável por aquilo que vês", jamais entendi o seu significado, até àquele momento. Estava decidido. Eu tinha que fazer alguma coisa.

Na manhã seguinte acordei, tomei o pequeno almoço e às escondidas calcei os sapatos da coragem. Eram uns sapatos especiais, vermelhos, com uma fivela prateada de lado, que a minha mãe só me deixava calçar no domingo para ir à missa. Sempre que os calçava, sentia que tinha o mundo a meus pés, era capaz de tudo! Era deles que eu precisava naquela manhã. Sentei-me lá fora, no quintal, e esperei pacientemente que a senhora dos pássaros desse inicio à sua rotina.
Tinha tudo planeado, bastava esperar pelo momento certo, momento esse que seria a limpeza das gaiolas, só tinha que ser rápida. Assim foi. Mal a vi retirar o fundo das gaiolas e afastar-se com eles para os ir lavar, precipitei-me rapidamente para a primeira, agarrei a asa que tinha no topo e levantei a gaiola! Se há momentos que gravamos na memória para toda a eternidade, este foi um deles. Foi como se o mundo parasse à minha volta, o único que ouvia, era o bater das asas
dos oito pássaros que sobrevoavam a minha cabeça, como que em sinal de agradecimento, e que eu acabara de libertar. Tinham as asas abertas, as suas penas coloridas em contraste com o azul do céu, fizeram daquele momento, um momento mágico! 

Fiquei estática, a segurar a gaiola vazia na mão, enquanto os via partir, o que não me foi nada favorável. Quando comecei a voltar a mim, já a dona dos pássaros andava à minha volta aos gritos -  O que foste fazer desta vez?! Soltaste-os! Vão acabar por morrer todos, não sabes? 
Estava tramada, não só não me podia declarar inocente, pois tinha a gaiola na mão, como já não podia soltar os outros, era demasiado arriscado, pensei. E a reprimenda teria ficado por ali, não fosse dar-se a feliz coincidência da senhora dos pássaros ser minha mãe. Aquilo ia render-me um valente castigo.

Foi muito o que aquele dia me ensinou. Por exemplo, que ser adulto significa não se saber ao certo o que se quer. No dia anterior pediam tanto o meu sorriso e agora tinha que o dissimular, ou ainda se zangavam. Também, que nem todos conseguem ver o mundo da mesma maneira. Descobri com aquele voo de liberdade, que não esqueço, que todas as prisões têm uma porta e que todos os cadeados podem ser quebrados.  Tudo o que fazemos em consciência, transforma-nos e connosco avança, sendo parte de nós. 

E quando alguém me pergunta quem sou, ainda hoje me apetece responder
 - Sou a filha da Senhora dos Pássaros.

Sónia M
(Algures no tempo...)



                                                                  O meu traquinas 

23 comentários:



  1. Coisas suas e que lindas! Uma ternura! Parabéns.

    Beijinho

    Laura

    (o meu comentário, julgo ter voado ~~~~ )

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  2. Parabéns à mãe...e o traquinas também o parece mesmo :)))

    Espero que não soltes os pássaros:))

    Beijo

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  3. Parabéns, tens um filhote todo simpático!
    A foto está espectacular...tens um herdeiro todo simpático!
    Quanto há ave, sou suspeito. Tenho bastantes cá em casa, desde canários a aves de porte, como papagaios, até às exóticas. Conclusão, gasto uma pequena fortuna por mês só em rações e vitaminas.
    Um beijinho!
    :))

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  4. Oi querida.
    Lindo conto, muito emocionante.
    Não gosto de nenhum tipo de prisão, mas às vezes precisamos acorrentar as palavras para não nos machucar.
    Adorei o seu filhote.
    Um beijo
    Lua Singular

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  5. Me encanto este Relato.
    Es cierto, todas las cárceles tienen una puerta y que nadie ni nada nos puede arrebatar esa Libertad que se antoja lejana y, con nuestra energía se vuelve puntual.
    ¡¡¡Gracias por Estar y por Ser siempre en mi Espacio!!! Eres un Encanto. Siempre estás en mi mente y en mi corazón.
    Abraços e Beijos...Recuerdos a tu maravillosa Familia.

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  6. Um encanto esta tua magia das palavras... a ginástica das palavras envolta em amor, sempre amor. Coisas tuas, coisas de todos. Cada consoante no seu devido lugar. Cada vogal no caminho certo. Adoro o que deixas fluir da tua alma. Beijos... os teus filhos são lindos. Uma mistura genética dos belos papás que têm. ;)

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  7. A senhora dos pássaros
    Deles era amiga
    Os mantinha bem tratados
    Dava-lhes água e comida
    Não lhe deixa deitar a mão
    Mas, a Sónia não entendia
    O porquê te tal proibição!

    Com o passarinho
    Pousado na cabeça
    Teu traquinas é lindo!

    Obrigado pela visita,
    amiga Sónia, te desejo uma boa noite
    um beijinho
    Eduardo.

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  8. (Algures no tempo...) a rapidez com que vejo o tempo a avançar... (jasuses)

    Muitos parabéns à Senhora dos Pássaros.

    Que não se perca nunca a Esperança, de em cada ninho existir uma Ninfa. Uma Ninfa como a Sónia que, transmite ao próximo todos estes valores! É em tudo isto que ainda reside a minha Esperança ;)


    Beijo ENORME Sónia. Beijinho aos seus traquinas e um bem haja ao Esperança.

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    1. Maria, o Esperança fez por aqui umas piruetas no ar, mal ouviu o seu nome ser mencionado. Quase me pousou na cabeça. Muito gosta a ninfa de me invadir o "telhado", acho que é essa a razão, pela qual os meus pensamentos voam, é ele o Esperança, que os rouba! Beijo enorme, obrigada!


      Os meus agradecimentos a todos que por aqui pousaram, tendo a paciência de ler a Senhora dos Pássaros.
      O meu abraço.

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    2. E como é bom sentir a(o) Esperança...acabou de me chegar agora uma noticia em que depositava a mínima Esperança, o quisto do Xico é benigno \0/.
      Um animal doméstico é uma mais valia numa casa onde haja crianças ;) (ó p´ra mim aqui toda contente)

      Beijos e mais Beijos, uma excelente semana, Sónia.

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    3. E ó pra mim toda contente!!! :))) Bem que a Esperança me voa por cima da cabeça, todos os dias. Nem eu me perco dela, nem ela de mim! Que boa noticia essa, Maria!!

      Beijos e mais beijos.
      Festas e mais festinhas ao Xico!!

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  9. Oi Sónia
    Passando para lhe deseja um bom início de semana.
    Aqui chove, a cama me espera.kkk
    Beijos
    Lua Singular

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  10. Adorei ler esta história, que me fez recuar aos meus 1ºs dez anos de idade, obrigado Sónia, adorei mesmo!
    O meu abraço

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    1. Eu devia ter os meus 6 ou 7 anos, quando soltei os pássaros à minha mãe.
      Ainda hoje ela fala disso (e de tantas outras coisas, eu era terrível!). E hoje é o seu dia...
      Como sempre evito partilhar textos tão compridos, sou eu que agradeço, ter tido a paciência em o ler. Obrigada. Um abraço!


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  11. Ola Sonia. Adorei.
    Pelo que pude entender o seu traquinas é bem parecido com voce. Um fofo.
    É uma calopsita?? parabéns .
    Beijos

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  12. Caríssima

    Peço desculpa pelo incómodo, mas a partir de hoje o meu blogue tem um novo endereço Pausa para Café (pausaparacafe.blogs.sapo.pt). Agradeço-te a maçada de actualizar o respectivos link.

    Beijinho


    Jorge Lynce

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  13. Hola Sónia, buenas noches,
    una gran historia,
    yo nunca pude liberar a ningún pájaro =(

    Felicidades a la señora de los pájaros.

    Que tengas una excelente semana
    un cálido abrazo

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  14. O teu Traquinas esta uma graça...
    Beijo Lisette.

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  15. adorei a história e quase que imagino a cara da senhora dos pássaros.
    o teu traquinas é muito bonito.
    um beijo para a senhora dos pássaros (atrasado) e outro para a filha da senhora dos pássaros.
    beijo

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  16. Que maravilha Sónia
    O seu ser, todo ele é poesia
    Sinto-me tão pequenininha
    Adoro a forma como sabe expressar seus sentimentos
    Beijo grande

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    1. Manuela, espero que saibas o quanto me sinto honrada com os teus comentários...

      Beijo enorme!

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